“Tenho uma proposta a fazer-te”, anunciou ele com ar solene, recostado no canapé.
Agnès balouçava suavemente na sua cadeira de balanço, olhando com melancolia para lá da janela, para as árvores do jardim que farfalhavam debaixo do vento fresco do anoitecer.
“Sim? “
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O barão pigarreou e endireitou-se. Agnès sentiu-o subitamente perturbado e desviou para ele a atenção, observando-o com curiosidade. Redier enrubes-cera, tinha o rosto tenso e os olhos inquietos, parecia nervoso.
“Sabes, Agnès, desde a morte da minha Solange que me tenho sentido muito só. Este palacete é enorme, mas não tão grande como a solidão que me atormenta. A vida parece-me vazia, sem sentido, os dias passam uns atrás dos outros e eu tenho esta terrível sensação de vegetar, sem direcção nem rumo, à mercê do tempo e do que o destino me quiser oferecer.” Fixou-lhe os olhos. “A tua vinda mudou um pouco tudo isso, trouxe-me alegria e uma certa raison de vivre. Afeiçoei-me a ti e não sei se suportaria viver nesta casa sem a tua presença. Tenho, por isso, uma proposta a fazer-te. “ O barão calou-se e ficou a observá- la, como se estivesse mergulhado num debate interior, tentando decidir se avançava ou não com a ideia que lhe fervilhava na mente.
Agnès agitou-se, inquieta, na sua cadeira de balanço, desconfortável com o enervante silêncio que se seguira àquelas intrigantes palavras.
“Sim? “
Redier suspirou pesadamente, ganhando coragem para avançar com a sua arrojada proposta, sabia que, depois de a formular, não haveria caminho de retorno, tudo seria diferente.
“Sou um homem de meia-idade e não tenho ilusões sobre o que sentes em relação a mim. “ Piscou os olhos com um tique nervoso. “Mas, mesmo assim, gostaria de pedir a tua mão em casamento. “
Agnès abriu a boca, surpreendida com a ideia. Encarava o barão como uma figura paternal, protectora e amiga, e não sentia a menor atracção por ele. A sua primeira reacção foi a de dizer que o casamento estava totalmente fora de questão. Ainda esboçou um gesto para rejeitar logo ali o pedido, mas hesitou, de certa forma afeiçoara-se a ele e não o queria magoar nem ofender, percebeu que teria de recorrer ao seu melhor tacto para lidar com a situação. Considerou a maneira mais apropriada de abordar o assunto e optou pela prudência.
“Bem, senhor barão, essa é... é uma proposta inesperada, estou surpreendida”, gaguejou, ganhando tempo para pensar. “A bem dizer, nem sei o que responder”
“Responde que sim”, implorou ele fervorosamente. Agora que formulara a proposta mostrava-se decidido a ir até ao fim. “Por favor, diz que sim”
“Mas temos uma grande diferença de idade, o senhor podia ser meu pai. “
“Escuta, Agnès. Como eu te disse, não tenho quaisquer ilusões. Sei que não me amas, isso é evidente e natural, és muito mais nova do que eu. Mas suplico-te que pelo menos 124
consideres seriamente o meu pedido. Deixa-me que te diga que os melhores casamentos não são os que partem de uma paixão que depressa se extingue, mas aqueles cujo amor vai nascendo com o tempo e amadurecendo como o vinho. Não tenho dúvidas de que irás aprender a gostar de mim, esse sentimento irá crescer naturalmente e estou certo de que poderemos ser muito felizes.”
“E se não crescer? “
“Crescerá, tenho a certeza. “
“É possível, não digo que não. Mas, e se não crescer? “ O barão voltou a suspirar, considerando essa hipótese. “Bem, parece-me evidente que essa é uma possibilidade que temos de admitir.“ Coçou o queixo, pensativo. “Olha, podemos perfeitamente começar devagar, deixar que as coisas aconteçam naturalmente. Por exemplo, em vez de irmos logo viver para o mesmo quarto, cada um pode manter-se inicialmente nos seus aposentos, aguardando o curso normal dos acontecimentos, sem nada forçar. Eu acho é que temos de fazer o caminho caminhando.“
Agnès disse que tinha de pensar. Era um mero estratagema para ganhar tempo e procurar uma forma de rejeitar delicadamente a proposta. Ao longo da semana que se seguiu considerou a ideia de vários ângulos, até admitiu o casamento como hipótese académica, imaginou como seria a sua vida unida àquele homem. A verdade, surpreendeu-se, é que talvez nem fosse assim tão má como isso. Ali estava ela perdida num mundo hostil, desenraizada, separada da família, fragilizada e vulnerável, e quem a ajudara, quem lhe tinha estendido a mão sem hesitar na sua hora difícil, tinha sido o barão, aquele mesmo homem que ela se mostrava tão pronta a desdenhar. É verdade que Redier era mais velho do que ela e que não a atraía, mas, observando-o agora com outros olhos, não os olhos de uma rapariga sonhadora, mas os de uma mulher madura, verificava que o barão até se revelava um homem interessante, bem conservado para a idade, enérgico e seguro de si.
Não se tratava, evidentemente, de um Matt Moore, longe disso, do ponto de vista físico não se podia comparar à famosa estrela de cinema, mas, quand même, o barão distinguia-se pelo ar charmant e mostrava ser uma pessoa sensível e culta. Além do mais, concluiu, era sensata a ideia de não forçar as coisas, de deixar que o casamento seguisse o seu rumo natural. Agnès deu consigo a imaginar-se realmente a viver com aquela figura distinta.
Casaram-se num sábado chuvoso de Outubro de 1916 na Conservatória de Armentières, numa cerimónia civil em que o único membro da família que a acompanhou foi Gaston, o irmão que desempenhava funções administrativas no sector de Champagne e que se encontrava de licença. No momento da verdade, Agnès fechou os olhos, despediu-125
se em segredo de Serge, sentiu-se invadida por uma plácida serenidade e, num sopro furtivo, disse “oui “.
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VII
O quartel do Pópulo dominava a grande praça com a sua larga fachada branca, à esquerda a igreja, a meio a porta de armas. O alferes Afonso Brandão saudou a sentinela e entrou no edifício onde estava aquartelado o Regimento de Infantaria 8. Atravessou o pátio de entrada e galgou a pedra das vastas escadarias interiores que cruzavam o centro das instalações. Afonso subiu os degraus sempre a admirar os vistosos azulejos azuis que embelezavam as paredes caiadas, eram reproduções de bucólicas cenas de monges em jardins, reminiscências da origem religiosa do vasto edifício. Na sua anterior passagem por Braga, nos tempos do seminário, soubera que aquele quartel era o antigo convento dos eremitas de Santo Agostinho, pelo que a decoração não lhe passou despercebida.
Calcorreou o soalho de madeira no primeiro andar e foi apresentar-se aos seus superiores hierárquicos.
A vida de um oficial no quartel de Braga era tão aventurosa como o retiro de uma freira num convento. Sem nada para fazer, a não ser talvez entediar-se até à morte, Afonso passou os primeiros dias a reconhecer o edifício e a inteirar-se da sua história. Descobriu que o Estado havia tomado conta do convento em 1834, quando da guerra civil entre D.
Pedro e D. Miguel, passando as instala-ções a servir de boleto das várias forças militares que iam para Braga enfrentar a guerrilha miguelista e pacificar a região. Infantaria 8, originalmente um regimento de Castelo de Vide, foi uma dessas forças, tendo sido destacado para o Minho com a missão de combater os miguelistas e Maria da Fonte, e acabando por se fixar no quartel do Pópulo em 1848, a pedido do município bracarense.
Quadros rústicos no topo das paredes das escadarias centrais do quartel mencionavam “combates em que tomámos parte nas alturas de”, seguindo-se uma longa lista de locais e datas, Buçaco em 1810, Fuentes de Onoro em 1811, Salamanca em 1811, Pyreneos em 1813, Nive em 1813, Barcelona em 1814, Orthez em 1814, Toulouse em 1814, e outros registos do género. Afonso estranhou alguns dos nomes e foi ter com o alferes Pinto, um minhoto magro e ruivo, chamavam-lhe o Cenoura, rapaz arrebatado e nervoso, simpatizante da monarquia e com quem tinha travado amizade. O alferes Pinto estava havia dois anos no regimento e Afonso perguntou-lhe o que significavam aquelas referências.