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“São as batalhas em que o nosso regimento participou”, esclareceu prontamente o Cenoura.

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“Infantaria 8?”

“Sim, claro, quem querias que fosse? “

“Mas ali são mencionadas cidades francesas, como Orthez e Toulouse... “

“ E então?”

“Mas nós estivemos a combater em França? “

“ Sim. “

“Em França?”

“Sim, claro. Foi durante as invasões napoleónicas. Fomos atrás dos gajos pela Espanha e pela França, com o Wellington a comandar-nos, dizia ele que nós éramos os galos de guerra do seu exército. “

“Arre!”

Para matar o tempo, Afonso tornou-se visita regular do padre Álvaro e foi duas vezes ao Largo de São Thiago visitar o seminário e rever rostos conhe-cidos. Os seminaristas eram outros, mas D. Basílio Crisóstomo permanecia ainda como vice-reitor e os professores mantinham-se, à excepção do padre Fachetti, entretanto regressado a Nápoles, e do padre Nunes, que se transferira para o Porto. Vê-lo de uniforme deixou os padres surpreendidos, Afonso passara de soldado de Cristo a soldado de el-rei, ironia que suscitou comentários espirituosos.

“Ainda dás pontapés nas pedras? “, perguntou-lhe o padre Francisco, o bonacheirão mestre de Retórica.

Todos se riram e Afonso corou.

“Às vezes. “

“Mas que grande pagodeiro! “, troçavam os padres, divertidos a recordarem as bizarras cenas no pátio do seminário.

Até o vice-reitor, que na altura não achara piada nenhuma às brincadeiras, parecia agora encontrar nelas uma graça inesperada, como se aquele comportamento que suscitara a expulsão do seminarista se tivesse transformado numa mera excentricidade digna de figurar na mitologia da instituição.

“Então como é que deste em oficial, Afonso, tu que não fazes mal a uma mosca? “, quis saber D. Basílio Crisóstomo.

“Oh, é uma longa história”, suspirou Afonso. “Digamos que andei à procura de uma profissão em que não se faça nada. Como vocês não me deixaram ir para padre, lá fui eu para a tropa.

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“Estás a ser injusto”, comentou o padre Francisco com ar trocista. “Nós dedicamo-nos a Deus, e nada existe de maior responsabilidade. Além do mais, temos de aturar os alunos do seminário, e isso dá uma trabalheira dos diabos, acredita. “

“Oh, se dá”, concordou D. Basílio em tom bonacheirão. “Mas olhem que nós na tropa também nos fartamos de trabalhar”, atalhou Afonso.

“A fazer o quê, pode saber-se? “

“Muita coisa. Para além das formaturas, jogamos às cartas, bebemos umas cervejolas, andamos a ver as catraias, fatigamo-nos a dormir, é uma canseira, um labor que só visto “ Apesar de cultivar um discreto sentido de humor, o alferes Afonso não era homem de fazer muitos amigos. Tratava-se de uma pessoa de trato fácil e tor-nara-se relativamente culto e interessado no mundo, mas nas relações pessoais preferia a qualidade à quantidade.

À excepção do alferes Pinto Cenoura, o seu rol de amigos era formado sobretudo por aqueles que tinha conhecido ao longo da vida. Convivia com o padre Álvaro em Braga e ia visitar Gustavo Mascarenhas a Vila Real, o amigo sempre conseguira lugar em Infantaria 13, o que não era surpresa para ninguém, Vila Real não era um sítio muito procurado pelos cadetes que se formavam na Escola do Exército. Chegou até a ir a Vinhais para ver Américo. O antigo companheiro do seminário estava diferente, casara, tinha filhos e envolvera-se no negócio do pai. Recebeu Afonso com efusão, encheu-o de comida e rodeou-o de atenções, mas Vinhais era longe e aquela foi a única viagem que o oficial fez até à remota povoação transmontana. O alferes mantinha igualmente correspondência com Trindade Ranhoso, que seguira o curso de estado- maior e ainda permanecia na Escola do Exército. Era através destas cartas que Afonso ia recebendo notícias do Campeonato de Lisboa de football, sendo informado pelo Ranhoso de que o Bemfica pusera fim ao reinado do Carcavellos Club e sagrara-se finalmente campeão. O Sporting ficou em quinto lugar. O

alferes celebrou a notícia com vinho do Porto e mandou uma carta ao sportinguista Mascarenhas a dar-lhe a notícia e a apresentar-lhe os pêsames.

Afonso nunca prestara especial atenção à política, esse era um assunto que não fazia parte do seu universo de interesses. Nisso tornou-se uma excepção. Quase todos os seus colegas discutiam com ar conspirativo o conturbado estado do país, e Afonso foi reparando que, apesar do ambiente predominantemente conservador de Braga, alguns oficiais eram republicanos. A cedência da Coroa ao ultimato britânico de 1890, que desfizera os sonhos imperiais do mapa cor-de-rosa, minara profundamente a credibilidade da monarquia no meio militar, e não só. O descontentamento grassava por toda a parte e o próprio Afonso tendia a concordar com a ideia de que a monarquia era coisa do passado. A imagem do rosto lácteo de D. Manuel II na abertura do ano escolar de 1908 ficara-lhe 129

indelevelmente marcada na memória, era para ele um choque pensar que o rei não passava de um rapazote da sua idade, como era possível acreditar que um miúdo ainda imberbe seria capaz de governar um império?

Foi ao pequeno-almoço, no quartel de Infantaria 8, que Afonso ouviu pela primeira vez a notícia de que algo muito grave estava a acontecer em Lisboa. Corria a manhã de 4 de Outubro de 1910.

“Já sabes da novidade?“, perguntou-lhe o alferes Pinto com um tom sigiloso mal o viu.

“Sei, o Bemfica é campeão. “

“Não sejas parvo. Andam aos tiros em Lisboa. “ “ O quê?”

“Disse-me o telegrafista. “

“Andam aos tiros? “

“É como te digo. Parece que saiu à rua o movimento republicano e houve algumas unidades que aderiram. “

“Quem? “

“Não sei bem. O telegrafista falou-me na Marinha e na Artilharia 1, mas a situação permanece confusa. “

“E nós? “

“E nós? E nós nada, estamos longe das coisas. O coronel reuniu-se com o seu estado-maior, os majores e os oficiais da sua confiança. Dizem eles que foram conferenciar, mas eu acho que estão mas é cagados de medo e preferem ficar a ver o que é que isto dá para depois apoiarem o vencedor”

“Tu quem é que apoias? “

“Eu? Que pergunta, Afonso. Eu sou pelo rei, já sabes. “ O dia prolongou-se, tenso e enervante, e os oficiais do regimento de Braga passaram as horas em redor do telegrafista e a conspirar em voz baixa nos corredores, uns pela monarquia, outros pela república, a maioria na expectativa e sem se compro-meter. Pedaços soltos de informação eram despejados pelo telégrafo. Segundo as notícias que vinham a conta-gotas, elementos de Artilharia 1 e Infantaria 16 tinham ocupado a Rotunda, onde também se encontravam alguns cadetes da Escola do Exército e civis armados, falava-se na Carbonária. As forças leais ao rei ocupavam o Rossio e defendiam pontos estratégicos, como os bancos, o Arsenal do Exército e o Palácio das Necessidades, onde se refugiava o monarca. A certa altura veio a notícia de que um dos chefes dos revoltosos, o almirante Cândido dos Reis, se suicidara após ter tido a informação de que o golpe fracassara.