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Pouco depois de se conhecer esta notícia, o comandante do regimento de Braga abandonou a sua reunião de estado-maior para se colocar ao lado do rei. Sentira que os monárquicos iam ganhar e apressara-se a posicionar-se no lado vencedor. Foi um erro. Os navios da Marinha desataram a bombardear o Rossio e o Palácio das Necessidades, e uma bandeira branca empunhada por um diplomata alemão para obter uma trégua destinada a retirar os cidadãos estrangeiros foi erradamente interpretada como sendo um sinal de que os monárquicos se rendiam. Os populares saíram em massa à rua para festejarem a vitória da República. O regime ficou desconcertado e, num acesso de pânico, o rei fugiu. Na manhã do dia 5, os líderes do movimento republicano subiram à varanda da Câmara Municipal de Lisboa e, perante uma vasta e eufórica multidão que se concentrara na Praça do Município, José Relvas proclamou a República em Portugal.

A vida mudou imenso em Braga. O novo poder em Lisboa contou as espingardas monárquicas nos regimentos e procedeu à limpeza. O coronel que comandava Infantaria 8

passou à reforma antecipada e o mesmo aconteceu aos majores e capitães da sua confiança que tinham cometido a imprudência de apoiarem a monarquia no momento em que esta se desmoronava. Pinto Cenoura, apesar de monárquico, escapou à varridela geral, lá devem ter pensado que não valia a pena preocuparem-se com a arraia-miúda, e o que era um alferes senão arraia- miúda? Seja como for, a limpeza provocou um movimento ascendente no quartel.

Como vagaram vários postos de oficiais, sucedeu-se uma catadupa de promoções e Afonso deu consigo em tenente apenas um ano depois de ter abandonado a Escola do Exército. Mas as vagas continuavam por preencher, pelo que, logo a seguir, foi a vez de o alferes Pinto ser igualmente promovido, talvez a sua costela monárquica fosse considerada uma mera bizarria da juventude.

A República trouxe consigo um acirrado clima anticlerical, o que se traduziu num rápido cerco à Igreja, fruto da promessa do novo governo em acabar com o catolicismo no país em duas gerações. Os jesuítas foram expulsos, o ensino do catolicismo proibido nas escolas públicas, vários bispos foram destituídos ou desterrados e foi aprovada a lei do divórcio. Em 1911 foi publicada a lei da separação das igrejas do Estado, que pôs fim aos subsídios à Igreja e lhe expropriou bens, incluindo propriedades. Um édito mandou encerrar todos os seminários do país e o Seminário Conciliar de São Pedro e São Paulo não foi excepção. Professores e alunos foram mandados para casa e o edifício do Largo de São Thiago entregue a Infantaria 29.

“Este país está um caos”, queixou-se amargamente o vice-reitor, D. João Basílio Crisóstomo, quando Afonso o visitou nas vésperas de o edifício ser abandonado. “Valha-131

me Deus, o poder caiu à rua! Onde é que já se viu perseguir assim a Igreja? Parece que voltámos à Roma antiga! “

“Tenha calma, D. Crisóstomo, que tudo se há-de compor. “ “Calma? Calma? Valha-me Deus, Afonso! “, agastou-se o vice-reitor, deambulando amargurado por entre os caixotes de tralha que arrumava antes que chegassem os homens do 29. “É uma vergonha para a civilização o que nos estão a fazer. Uma vergonha, ouviu bem? E uma vergonha para o uniforme que você enverga! Onde é que já se viu entregar um seminário à tropa? Onde é que já se viu mandar encerrar os seminários? Mas que país é este, Virgem Santíssima, que país é este que assim persegue a fé?”

As mudanças eram generalizadas e atingiram quase todas as instituições. Até a Escola do Exército teve de mudar de nome, passando em 1911 a Escola de Guerra. O governo republicano reorganizou o Exército, abandonando o modelo profissional e adoptando a forma miliciana, e a Escola viu suprimido o curso de Engenharia Civil, ficando exclusivamente dedicada ao estudo das ciências bélicas. Rolaram cabeças monárquicas por toda a parte e os postos cruciais foram entregues a republicanos, mas a maior parte dos oficiais que ocupavam os cargos intermédios permaneciam leais à coroa exilada e manifestavam má vontade para com o novo regime.

O aparecimento da República não pôs fim à conturbada instabilidade política em que o país estava mergulhado, até porque havia uma enorme expectativa popular em relação aos republicanos, expectativa de que as suas políticas conduziriam rapidamente à estabilidade e à prosperidade e que eles, naturalmente, não conseguiram satisfazer. Em boa verdade, só se podiam recriminar a si mesmos, tão alta tinha sido a fasquia que colocaram quando se encontravam na oposição à monarquia. Para conter os preços dos produtos alimentares básicos, o novo governo criou uma tabela de preços independente da lei da oferta e da procura. Como resultado, e apesar de a tabela nem sempre ser respeitada, a produção agrícola baixou em qualidade e quantidade. Nos mercados começaram a escassear os cereais, o feijão, a batata e a carne, e até o pão se tornou escuro e malcheiroso.

O descontentamento grassava, em particular no Norte, liderado pelo clero. Os próprios republicanos estavam divididos, com Afonso Costa a chefiar os radicais, António José Teixeira a liderar os moderados e Brito Camacho à frente dos conservadores. As medidas radicais, tanto no combate à Igreja como na política económica e social, eram invariavelmente levadas a cabo por Afonso Costa, com Teixeira e Camacho horrorizados com o que consideravam serem excessos reformistas. Como se toda esta confusão não bastasse, também os monárquicos se encontravam divididos, com os fiéis do rei no exílio a mostrarem-se mais moderados na sua oposição à República do que um outro grupo, 132

chefiado por Paiva Couceiro, que se refugiara na Galiza e se preparava para pegar em armas. No meio deste clima efervescente multiplicavam-se os boatos e falava-se em golpes de Estado, em novas revoluções, em guerra civil.

Embora não estivesse alheado dos problemas que o rodeavam, Afonso viveu com indisfarçável prazer a sua condição de tenente. O soldo de tenente era melhor do que o de alferes, as refeições na messe dos oficiais não eram más apesar da crise, ia à missa na Sé, sentando-se sempre por baixo do magnífico órgão, como nos seus tempos de seminário, e usufruía da cumplicidade de novos amigos, sobretudo do tenente Pinto.

Na companhia do Cenoura, Afonso ganhou gosto às coisas doces da vida. Passavam o dia a jogar bridge no café A Brazileira, onde um cartaz na esquina da Rua Nova de Sousa, rebaptizada Rua D. Diogo de Sousa em 1912, anunciava que “o melhor café é o d'A Brazileira”, ou a ver as garotas a bambolearem-se no Jardim Público. Iam comprar maís e regueifas de pão podre à Padaria Central ou comer sameirinhos e fidalguinhos à Marinho & Filho, a velha pastelaria que todas as tardes lhes adoçava a boca e temperava a alma. Por vezes almoçavam na Pensão Aliança, que servia boas sarrabulhadas, ou no Hotel Central, mesmo junto ao quartel, onde a opção variava sobretudo entre o sarapatel e o empadão de peixe.

Às quintas e domingos à noite, Afonso e os restantes oficiais juntavam-se às famílias em torno do coreto do Jardim Público, pomposamente designado Pavilhão Musical, e escutavam os concertos da banda militar de Infantaria 8. Nas outras noites, os tenentes Afonso e Pinto iam encher-se de cerveja na Cervejaria Cruz & Sousa ou davam um salto ao Café Vianna, por baixo da Arcada, e ficavam a jogar à roleta, à batota e à banca francesa até às duas da manhã. O ambiente fumarento era animado pela melodia alegre dos concertos de piano e pelos bailados das roliças dançarinas contratadas para entreterem os fregueses.