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“Tudo basófias, moinhos de vento, espantalhos para assustar a malta. Mas, não te preocupes, essa treta de irmos para a guerra não vai passar de conversa “

“Isso já não sei. “

“Mas sei eu. Só vamos para a guerra se a Inglaterra nos pedir. E a Inglaterra, que não é parva e nos conhece de ginjeira, nunca o vai pedir. Por isso, cá vamos ficar nós a brincar às guerras aqui em Tancos. “

“Olha que há dois anos, quando a guerra começou, eles pediram para a malta entrar.

“Isso já lá vai. Não fomos e agora já não vamos. Os bifes já nos toparam, para que é que querem eles um bando de maltrapilhos a combater lá em França? Dávamos-lhes mais trabalho do que uma divisão de boches. “

Afonso fixou os olhos na fila de homens à sua frente, à espera de vez para entrar nas latrinas, e decidiu pôr termo à discussão.

“Olha lá, vamos ou não aliviar-nos? “

Os prós e os contras dos preparativos para a guerra eram calorosamente discutidos na messe de Tancos, transformada num verdadeiro caldeirão de intrigas e conspirações, os oficiais a degladiarem-se sobre os méritos e demé-ritos de um eventual envolvimento de Portugal na guerra, um envolvimento em que poucos, na verdade, acreditavam. Mas os acontecimentos precipitaram-se em 1916.

A Grã-Bretanha precisava de reforçar a sua frota de navios para compensar as perdas que a campanha levada a cabo pelos submarinos alemães estava a infligir no contingente da marinha mercante. No início do ano, os aliados descobriram que trinta e seis navios 139

alemães se tinham refugiado em portos portugueses e, após uma troca de mensagens, Londres invocou a aliança militar e pediu a Lisboa que apreendesse os barcos. Os navios foram tomados de assalto a 23 de Fevereiro e a Alemanha declarou guerra a Portugal a 9 de Março.

O clima conspirativo atingiu por toda a parte o seu clímax. Apenas o Partido Democrático, no poder, e o Partido Evolucionista apoiavam a entrada de Portugal na guerra. Tudo o resto era oposição. Os unionistas, os monár-quicos, os católicos, os socialistas, os sindicalistas, os republicanos moderados, os republicanos conservadores, a maior parte do Exército, todos se mostravam anti- intervencionistas. Conspirava-se nos corredores do Parlamento e nos quartéis, nos cafés e nos botequins.

Ainda em Tancos, e em pleno ambiente de surda contestação, o capitão Cabral voltou a acercar-se de Afonso para exprimir o seu descontentamento com o estado de coisas. Repetiu os argumentos do costume sobre o despro-pósito da intervenção portuguesa e a irresponsabilidade criminosa do governo, e o tenente, sem querer entrar em discussões que lhe pareciam estéreis, a tudo foi dizendo que sim, pois claro, é uma vergonha, o que é que se pode fazer? isto não tem remédio. Encorajado com a aparente receptividade de Afonso, e sem a perspicácia de perceber que se tratava de mera cortesia destinada a evitar um confronto verbal com um superior hierárquico, o capitão deixou cair o verdadeiro propósito da conversa.

“Ó tenente, diga-me lá sinceramente”, atalhou, como quem não quer a coisa, ao mesmo tempo que o sondava intensamente com os olhos. “Você estava disposto a tomar uma atitude? “

“Uma atitude, meu capitão? Mas que atitude posso eu tomar?“ “Uma atitude, homem, uma coisa a sério. Sei lá, ajudar a impor a voz da razão.“ Afonso pensou no que aquelas palavras não diziam, mas sinuosamente insinuavam.

“Pegar em armas, quer o meu capitão dizer? “

“Eh lá, rapaz, essa é uma maneira forte de pôr as coisas”, atalhou Cabral com uma gargalhada nervosa e os olhos perscrutadores, à procura de sinais de cumplicidade. O rosto recuperou depois a seriedade e a voz manteve-se serena, embora um tudo-nada excitada.

“Temos de pensar no que vamos fazer. Mas é verdade que somos militares e temos uma responsabilidade para com a pátria. Se essa responsabilidade nos obrigar a pegar em armas... “

O capitão Cabral deixou a frase a pairar sibilinamente no ar, aguardando com expectativa a reacção do tenente. Afonso olhou para as unhas como se estivesse preocupado com a porcaria lá entranhada e levou um bom momento a pegar na palavra.

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“Às ordens de quem, meu capitão? “

Cabral sorriu.

“Digamos que há uma importante figura da República que quer pôr fim à bagunça, colocar as coisas em ordem e salvar o país de uma catástrofe... “ Afonso endureceu o rosto.

“Meu capitão, eu fiz um juramento de bandeira e tenciono respeitá-lo. Actuar... “

“Eu também, Afonso, eu também respeito a bandeira. “

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“Deixe-me acabar. “

“Diga lá “

“Eu respeito o meu juramento de bandeira. Isso significa que cumpro as ordens que são legitimamente dadas pela minha hierarquia. Actuar de modo a violar a lei é algo que eu não farei “

“Mas asseguro-lhe, Afonso, que nós também. “

“Meu capitão”, cortou Afonso. “Não participarei em nenhum acto ilegal ou sedicioso e aconselho-o a que não me dê mais informações sobre o que tenciona fazer, o senhor e a importante figura da República que mencionou, porque senão ver-me-ei na obrigação de relatar esta conversa aos nossos superiores “

O capitão Cabral suspirou, agastado.

“Muito bem, Afonso, faça como entender. Se quer colaborar com esta política irresponsável e ruinosa para a pátria, colabore. Mas não se arme em moralista e em fiel defensor da legalidade, a história dirá quem são os verdadeiros traidores. “ Afonso passou a evitar os grupos, a conversa era sempre a mesma e enfastiava-o.

Além disso, não queria ser permanentemente colocado no dilema de ter de escolher entre passar a vida a discordar dos seus camaradas ou, em alternativa, a ter de con cordar com eles para evitar discussões, mas correndo o risco de tal ser interpretado como um envolvimento tácito naquela epidemia de conspirações e má língua.

Mau-grado este clima, os preparativos militares prosseguiram e os elementos da Divisão de Instrução, uma vez completados os exercícios em Tancos, regressaram em Agosto aos quartéis. Foi com alívio que Afonso voltou a Braga e foi no quartel, em pleno exercício de esgrima, que ouviu pela primeira vez falar no Corpo Expedicionário Português. Inicialmente dizia-se que seria formado por uma única divisão, em Dezembro começaram a ser mencionadas duas divisões, e depois três. A partida das tropas foi marcada para o início de 1917, os primeiros regimentos a entrarem nos barcos seriam Infantaria 7, 15 e 28.

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A apenas três semanas do embarque, as forças de Infantaria 34, aquarteladas em Tomar, iniciaram uma revolta. Corria o dia 13 de Dezembro e um dos heróis da República, o prestigiado general Machado Santos, o mesmo que no 5 de Outubro tinha liderado o audacioso avanço dos revoltosos republicanos da Rotunda até ao Rossio, fez publicar um Diário do Governo a demitir todos os ministros e a nomear substitutos. O jornal era falso, mas o envolvimento de Machado Santos verdadeiro, o herói da revolução republicana queria impedir o embarque das tropas para França. As unidades fiéis ao governo reagiram a tempo e a intentona falhou. Nos dias seguintes descobriu-se que a maior parte dos oficiais envolvidos na sublevação estavam escalados para seguirem para França. O executivo teve de os substituir à pressa, uma situação que atrasou em algumas semanas a partida do CEP.

Pior do que isso, abalou profundamente o moral dos soldados. Se nem os seus oficiais os queriam conduzir na guerra, o que iam eles para lá fazer? Alguns capitães e majores de Infantaria 8, incluindo o capitão Cabral, foram detidos por causa do papel que desempenharam na revolta e tornou-se necessário preencher estas vagas. Afonso deu consigo promovido a capitão.