“Não sejas parvo, Jacques, a profecia é a de que a guerra vai acabar em breve. “
“Não foi isso, em bom rigor, o que o nosso convidado leu no jornal”, disse o barão, apontando para O Século. “O que, pelos vistos, está ali escrito é que a guerra terminará.
Ora, bem vistas as coisas, essa não me parece ser uma profecia muito difícil de fazer, é evidente que a guerra, mais tarde ou mais cedo, vai terminar. Até eu posso prever isso. A grande questão é saber quando, e isso esses intrujões fanatizados já não se atrevem a profetizar. “
“Presume-se, pelo contexto da frase, que será em breve. Não acredita nisso, Alphonse? “
“Bem, eu gostaria que fosse verdade... “
“Mas acredita ou não acredita?”
“Não sei em que pensar”, atrapalhou-se Afonso. “Era bom que fosse verdade. “
“Isso é tudo uma fantasia”, riu-se o barão. “Vivemos tempos difíceis e é nestas alturas que aparecem profetas, milagres, crendices a apontar o caminho da salvação. As mensagens messiânicas são normais nestes períodos de incerteza e aflição. “
“Acha? “, interrogou-se o capitão.
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“Tenho a certeza”, asseverou o anfitrião. “Vai ver que a guerra não irá acabar imediatamente e que, daqui a algum tempo, já ninguém vai falar dessas crianças. “ Agnès olhou-o com irritação. Após um breve instante de olhar carregado, suspirou e voltou-se para Afonso.
“Jacques é ateu”, explicou. “É pior do que Robespierre. Veja lá que até faz pouco de Lourdes. “
“Ah”, exclamou Afonso, nada surpreendido.
“O senhor sabe o que aconteceu em Lourdes? “
“Naturalmente”, assentiu o capitão. “Tal como em Fátima no mês passado, a Virgem apareceu numa gruta de Lourdes a uma criança... “
“Bernardette Soubirous.”
“Isso. A primeira aparição foi em 1858, já lá vão quase sessenta anos. “
“Oh la la!“, espantou-se a bela baronesa. “Até sabe o ano.“ “Eu disse-lhe que era um homem de fé”, sorriu Afonso. “Crendices! “, cortou o barão, sempre céptico, abanando a cabeça.
“Eu tive uma vez um professor na faculdade que era tão anti-religião como o meu marido”, disse Agnès com um sorriso. “Era o professor de Anatomia, chamava-se Bridoux.
Dizia ele que a religião era a inimiga da ciência. “ Fitou Afonso. “Também acha isso, Alphonse? “
“Sim, até certo ponto poderá ser verdade”, assentiu Afonso. “Sabe, tanto a religião como a ciência oferecem explicações para o mundo, mas o problema é que essas explicações competem entre si. Para que uma seja verdadeira, a outra tem de ser falsa. É
por isso que a religião sempre fez tudo o que podia para desacreditar a ciência e é por isso que a ciência faz agora o mesmo à religião. Há, todavia, uma hipótese que ainda ninguém colocou e que me parece merecer ser explorada.
“Qual é? “
“É a possibilidade de estarem as duas a falar verdade, embora complementando-se uma à outra, dizendo verdades diferentes. Já reparou que não é possível demonstrar cientificamente a existência de Deus, mas também não é possível demonstrar o contrário? “
“É um facto. “
“Os filósofos ateus afirmam que nós projectamos numa entidade divina as nossas próprias características, o que significa que Deus é uma mera criação humana. “
“Quem diz isso? “
“Oh, vários filósofos. Sei lá, Schopenhauer, Hegel, Feuerbach... “
“Todos alemães”, riu-se Agnès. “Só por isso os boches merecem perder a guerra. “ 165
Afonso sorriu.
“Já vi que acha essas ideias uma heresia. “
“Não, nem por isso, estava só a brincar. Julgo até que essa é uma tese que merece atenção.”
“É o que eu penso. Mas a verdade é que, se, por um lado, o homem criou Deus à sua imagem, por outro, coloca-se a questão de saber quem criou o homem? Ou, mais importante ainda, quem criou tudo o que nos rodeia, quem criou o universo? Será que as coisas surgiram sem qualquer razão, o universo apareceu por aparecer, assim sem mais nem menos? “
“Concordo consigo”, disse Agnès, estimulada por este pensamento. “Talvez a verdade seja partilhada pela religião e pela ciência, essa é uma hipótese fascinante.”
“A minha ideia vai para além disso, m'dame, a minha ideia é a de que não há uma única verdade. Nietzsche dizia que não há factos, só interpretações, o que é verdade do ponto de vista do ser humano. É indesmentível que existe uma realidade, aquilo a que Kant chamava a coisa em si, o nómeno. Mas, como o próprio Kant notou, nós não vemos a coisa em si, apenas vemos as suas manifestações. Ou seja, nós interpretamos o real. “ Olhou em volta e viu uma fotografia emoldurada na parede, era o barão montado a cavalo, com uma espingarda a tiracolo e rodeado de cães, uma cena de caça em Compiègne.
Afonso apontou para a imagem. “É um pouco como aquela fotografia ali, está a ver?
Aquele não é o senhor barão, mas uma imagem dele. Percebe? A fotografia não é o real, é uma representação do real, construída a partir de um ângulo, com determinados filtros e segundo um determinado código arbitrário. Tal como a fotografia reconstrói o real, pondo-o a preto e branco, por exemplo, nós também o reconstruímos. Já Kierkegaard tinha observado que tudo o que existe é algo exclusivamente individual. Ou seja, nós pomos algo de nós próprios quando interpretamos a realidade e é por isso que a nossa verdade é diferente da verdade de outras pessoas.”
“Portanto, não há verdade. É isso? “
“Não, claro que há verdade, claro que há. Mas há muitas verdades. O real é uno, embora inatingível na sua plenitude. As verdades são múltiplas, uma vez que são interpretações individuais do real. Eu sei que parece complicado, mas...“
“Não, não, estou a entendê-lo perfeitamente, é realmente uma ideia inte-ressante. “
“Sabe, eu acho que esta é a única maneira de estabelecer que a religião e a ciência podem estar as duas a falar verdade”, concluiu o capitão. “O real é uno, mas cada um destes discursos, o religioso e o científico, apresenta uma interpre-tação individual desse 166
real. As duas podem até ser contraditórias e, paradoxal-mente, permanecerem ambas verdadeiras.“
Fez-se silêncio, apenas quebrado pelo som dos estalidos da madeira a arder na lareira. As sombras do lume dançavam pela 5ala, as fagulhas saltitando e bailando pelo ar como pirilampos nervosos. Todos fitavam o fogo, Afonso com um sorriso de íntima satisfação. Desde os tempos do padre Nunes, no seminário, e do Trindade Ranhoso, na Escola do Exército, que não voltara a discutir filosofia com ninguém. Era um imenso prazer estar a fazê-lo agora, pela primeira vez em tanto tempo, naquele recanto perdido de França, ainda para mais com uma mulher lindíssima.
Interrogou-se se alguma vez conseguiria falar de coisas tão profundas e apaixonantes com uma portuguesa, mas tinha muitas dúvidas, não se imagi-nava a conversar sobre Hegel com Carolina.
Só essa constatação encheu-o de admiração por Agnès.
A francesa, por seu turno, tinha também a mente concentrada em Afonso, nas palavras que pronunciava, na maneira ágil como raciocinava. Era a primeira vez desde o namoro com Serge que mantinha uma conversa tão interessante com alguém, um diálogo que a libertava daquelas quatro castra-doras paredes e, atravessando uma maravilhosa janela imaginária, a lançava destemidamente numa viagem feita de encantamento e magia, um deslum-brante périplo pelo inspirador mundo das ideias, um universo rico, pleno de pensamentos audazes, de novidades palpitantes, de revelações surpreendentes. Lembrava-se de ter tido essa sensação quando visitou a Exposição Universal de Paris ou quando o pai lhe ensinou os segredos do vinho. Também viveu as mesmas emoções de descoberta ao frequentar as aulas de Medicina e na altura em que conheceu Serge e o seu sublime mundo das artes. Agora vinha este capitão português despertar-lhe esses sentimentos, esse gosto pelo conhecimen-to, pela exploração, e Agnès desejou arden temente ficar ali toda a noite a descobri-lo.