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“Você é realmente parecido com uma pessoa que conheci. “

“Espero que seja uma parecença agradável.”

Ela sorriu com tristeza.

“Je vous attends”, murmurou intensamente, evitando responder. Deu meia-volta para se retirar e, afastando-se, olhou de relance para trás, com um movimento gracioso e uma expressão afável. “Bonne chance! “

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III

A terra estendia-se pelo campo quase plano, desértico e desolado, ao mesmo tempo molhado, enlameado, sujo. Até onde os olhos podiam ver o solo era revolto, árido, tudo se encontrava queimado, o chão apresentava-se esbura-cado pelas crateras de granadas de obuses e esventrado por minas, aqui e ali viam-se poças de água e lama donde emergiam ferros contorcidos, um ou outro cadáver humano em decomposição, ossos, botas com os pés decepados lá dentro, farrapos de uniformes, ratazanas mortas a boiar. As únicas coisas de pé naquele tenebroso mar de desolação eram as redes enrodilhadas de arame farpado, árvores calcinadas sem folhas e com os troncos carbonizados, paredes incompletas do que outrora foram casas e não passavam agora de tristes e irreconhecíveis ruínas.

Um silêncio profundo abatera-se na última hora sobre esta sinistra paisagem lunar.

Encostado ao parapeito, Matias Silva, a quem chamavam Matias Grande, não sabia o que mais detestava. Este seu turno nas trincheiras começara havia apenas dois dias e ainda não se habituara totalmente ao cheiro a fezes que provinha das fossas por baixo do estrado de madeira, um cheiro a que se misturava o odor nauseabundo de carne putrefacta, de detritos de comida apodrecida e de urina. Para se proteger do frio tinha vestido sobre a farda o seu colete de pelica, feito de pele de carneiro e sem mangas, que se tornara uma imagem de marca dos soldados portugueses na Flandres durante os dias frios. Chamavam-lhes, por isso, os lãzudos. Matias levantou a cabeça pelo parapeito do posto, em Neuve Chapelle, e espreitou para as posições inimigas. Da primeira linha, no ponto onde se encontrava de vigia, até à primeira linha alemã distavam quinhentos metros.

“Méééééé! “, gemeu uma voz fingidamente trémula du outro lado da terra de ninguém. “Méééééé! “

“Filhos da puta dos boches que já me viram!“, resmungou por entre dentes a sentinela portuguesa, afastando-se cinco metros do local por onde espreitara, não fosse o diabo tecê-las.

O colete de pele de carneiro era um sucesso entre a tropa alemã.

Do outro lado das trincheiras estavam os homens da 50. Divisão do VI Exército alemão, comandado pelo general von Quast e pertencente ao grupo de exércitos do príncipe herdeiro Rupprecht, que não se cansavam de provocar os portugueses com imitações de sons de rebanho. Alguns lãzudos ficaram inicialmente fora de si com estas 171

graçolas do inimigo, mas já todos se tinham habituado, a piada, de tanto repetida, deixara de fazer efeito, e, quando atiçados, os homens dos quatro batalhões de infantaria da Brigada do Minho, a 4.a Brigada da 2.a Divisão do CEP, limitavam-se agora a ruminar alguns insultos contra os alemães.

A primeira linha portuguesa prolongava-se por dez quilómetros, da trincheira de comunicação New Bond Street, no sector de Fauqussart, até Ferme du Bois, a sul, com Neuve Chapelle no meio. Este era, de resto, um troço cheio de história antes de os portugueses chegarem. Foi justamente em Neuve Cha-pelle que, em Outubro de 1914, os alemães utilizaram pela primeira vez gases químicos como arma de guerra. Na altura estas trincheiras eram ocupadas por tropas francesas que, no entanto, nem repararam nos gases não letais que as granadas de schrapnel transportavam, pelo que a estreia das armas químicas se saldou por um fracasso. Depois, em Março de 1915, já com as tropas inglesas a ocuparem o sector, foi aqui lançada a primeira grande ofensiva britânica contra as posições alemãs. Após sucessos iniciais, a ofensiva fracassou ao fim de três dias, mas revelou-se uma acção politicamente importante porque serviu para mostrar aos franceses o empenho dos seus aliados britânicos. Na Batalha de Neuve Chapelle foram pela primeira vez na guerra utilizados aviões para foto-grafar as posições inimigas, de modo a fornecerem informação para a operação, uma prática que se tornaria rotineira, embora perigosa, nas acções subsequentes.

Agora, neste dia 22 de Novembro de 1917, Neuve Chapelle e as vizinhas Ferme du Bois e Fauquissart viviam tempos calmos nas mãos dos portugueses. Todo o sector da primeira linha era constituído por três linhas fundamentais de trincheiras, todas elas paralelas e ligadas entre si pelas trincheiras de comuni-cação, que as cruzavam perpendicularmente. A mais adiantada das três linhas era a linha da frente, com um desenho quebrado, quase aos ziguezagues, num esforço deliberado de fugir ao traçado rectilíneo para evitar enfiamentos e facilitar o cruzamento do fogo das metralhadoras defensivas. Diante da linha da frente, logo a seguir ao parapeito da trincheira, estendiam-se três faixas de rolos de arame farpado, erguidos para dificultarem a progressão do inimigo quando este atacava pela terra de ninguém. Atrás, cavada paralelamente à linha da frente, estava a linha B, que constituía a principal linha de defesa adiantada e se encontrava protegida por mais uma faixa de rolo farpado e por ninhos camuflados de metralhadoras pesadas, em geral Vicers. Mais atrás ainda, a linha C, também conhecida por linha de apoio, onde se situavam as sedes dos batalhões avançados. Depois destas três filas de trincheiras, conhecidas globalmente sob a designação de primeira linha, vinha a linha das aldeias, ligando Richebourg, Pont du Hem e Laventie, igualmente protegida por uma longa rede de 172

arame farpado, e a linha de Corpo, que passava por Huit Maisons e Lacouture, constituída por vários pontos fortificados que defendiam as principais vias de comunicação para a retaguarda.

Finalmente, ao longo da ribeira de Lawe, a linha do Exército, atrás da qual se encontravam os quartéis-generais e uma legião de cachapins, a expressão pejorativa por que eram referidos todos os militares envolvidos em tarefas burocráticas e que das trincheiras apenas conheciam as fotografias que viam nas revistas.

Matias sentiu movimento à esquerda. Pelos regulamentos estava proibido de virar a cabeça para outro lado que não fosse a terra de ninguém, mas tinha de se certificar de que o inimigo não entrara furtivamente na primeira linha. Afinal de contas, as trincheiras eram locais habitualmente desertos, andava-se centenas de metros e só se via uma sentinela, pelo que qualquer movimento naquele sítio desolado tinha de ser identificado. Olhou para a esquerda e não viu ninguém. Poderia ser o sargento ou o oficial de serviço à ronda da linha da frente, mas tinha de ter a certeza. Virou a Lee-Enfield e apontou-a preventi-vamente.

“Quem vem lá “, perguntou.

“Tiro”, foi a resposta. “Contra- senha? “

“Fogo”, disse Matias, descontraindo-se e voltando a prestar atenção à terra de ninguém.

Um soldado também protegido por um colete de pele de carneiro apareceu da trincheira de comunicação La Fone Street, perpendicular à linha da frente e construída igualmente em sucessivos ziguezagues, e apresentou-se no posto da sentinela. Matias viu-o e reconheceu Vicente, um homem baixo e forte, o rosto largo, um bigode tímido no canto dos lábios e umas mãos de ouro, era carpinteiro em Barcelos e o jeito para criar objectos a partir da madeira atingira tal fama que todos o conheciam por Manápulas.

“Venho render-te”, anunciou Vicente. “Com'é qu'está esta merda?” Vicente era um pouco trapalhão a falar, disparava as palavras com rapidez sôfrega e engolia algumas sílabas. Era por vezes difícil entendê-lo, mas, com o hábito, Matias tornou-se um bom descodificador das suas conversas.