“Tive uma hora tranquila”, foi a resposta. “A costureira dos boches abriu fogo há vinte minutos, mas acho que foi só para me manter acordado. “
“Brrrr, tá qui um gelo... “
“Aguenta-te, Manápulas, que eu agora vou serrar presunto e ver se como umas gajas no abrigo. “
“Vai mas é pentear macacos, meu cabrão! “
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Matias riu-se e saiu dali em passo rápido, aliviado, permanecer na linha da frente punha qualquer pessoa nervosa. É certo que a tarde ia ainda no princípio e que o pior era a noite, mas ninguém ignorava que, em corrida e se não existissem obstáculos, bastariam aos alemães entre quinze segundos a dois minutos para cruzarem a terra de ninguém e aparecerem nas trincheiras portuguesas, dependendo do ponto da frente onde fizessem a travessia. Em alguns sectores, a distância era de uns meros oitenta metros, noutros atingia os oitocentos. Quando volta e meia os alemães efectuavam um golpe de mão, as sentinelas da linha da frente viviam uma experiência desagradável.
O soldado meteu por La Fone Street, apanhou a linha B, paralela à linha da frente mas cem metros mais atrás, atravessou os postos das metralhadoras pesadas, umas Vickers Mk rotativas, alimentadas por um cinto de munições e protegidas por sacos de areia com uma abertura para a terra de ninguém. Matias cruzou ainda o posto dos telefones e alcançou Ghurkha Road, seguiu-a até Sign Post Lane, voltou à direita e foi apanhar Cardiff Road. Passou pelo abrigo de comando e chegou a Euston Post, onde naquele dia estava montada a cozinha.
“Matos”, chamou. “Dá-me aí o borrego assado com batatas a murro e o molho de caviar. “
O cozinheiro pegou numa tigela.
“É para já, senhor marquês”, disse, enchendo a tigela de sopa aguada e entregando-a ao soldado.
Matias pegou num naco de pão, sentou-se sobre a tábua e viu a água gordurosa com legumes a boiar na tigela branca.
“Porra, Matos, puseste caviar a mais”, queixou-se, metendo uma colher à boca e engolindo devagar a sopa juliana.
Matias Grande era um minhoto bem-disposto. Vinha de Palmeira, uma freguesia a norte de Braga, e estava habituado à boa e pesada comida do Minho, mas aqui, nas trincheiras, não tinha ilusões quanto à qualidade da cozinha. A sua mãe fazia canjas de sonho, suculentas, ricas, temperadas, regadas a coentros da horta, um manjar dos deuses a que só agora dava o devido valor. Desde que chegara a França, integrando o Batalhão de Infantaria 8 da Brigada do Minho, Matias Grande raramente voltou a comer bem. Sonhava abundantemente com as sopas secas, as bolas de carnes, as orelheiras e as papas de sarrabulho, mais as deliciosas sobremesas de arrufadas, de brisas e de roscas, para já não falar das fabulosas molarinhas. Mas ali, nas primeiras linhas, tudo isso não passava de fantasias cruelmente alimentadas pela memória de dias que, sendo de miséria e feitos de carências, vistos daquela perspectiva pareciam fartos e opulentos. Tal como a generalidade 174
dos seus companheiros, Matias emagrecia meio quilo por dia quando ocupava as trincheiras e só ao voltar às aldeias da retaguarda, uma semana depois, é que conseguia restabelecer o peso.
Mas, se houve algo que aprendeu naquele lugar, foi a dar valor aos pequenos nadas.
As coisas mais simples proporcionavam-lhe agora momentos de inexprimível alegria. Fruía os instantes de silêncio, saboreava com gosto qualquer alimento, mesmo o repetitivo corned-beef lhe sabia quase tão bem como uns rojões à moda do Minho, gozava com o calor da aguardente distribuída às sentinelas a arder-lhe nas entranhas e a queimar-lhe o sangue, deleitava-se com os instantes em que não tinha tarefas atribuídas e se empenhava aplicadamente em recuperar o défice de sono ou em sonhar com o ar perfumado dos montes do Minho, com as águas frias do Este a congelar-lhe os pés ou com o calor ternurento da sua Francisca a aquecer-lhe a alma e a atear-lhe o fogo da paixão. Durante uma marcha, até uma paragem de meio minuto lhe dava prazer. Como qualquer outro soldado do CEP, Matias aprendera a viver para o presente, para o momento, vivia como se não existisse amanhã, como se não tivesse futuro, como se o tempo lhe fugisse, como se a morte o pudesse levar daí a uma semana ou já no minuto seguinte.
Depois de esvaziar a sua quota de corned-beef e de tomar o chá, que bebericou de olhos fechados, saiu da cozinha e voltou a La Fone Street até chegar à linha C, quinhentos metros atrás da e completando as três linhas de trincheiras que constituíam a primeira linha.
Na linha cruzou-se com elementos da reserva do batalhão e foi para a zona das latrinas. O
cheiro a excrementos, sempre presente nas trincheiras em geral, e nas portuguesas em particular, era aqui mais intenso. Matias agarrou num balde, fechou a porta da latrina, defecou para o balde enquanto ia abanando a mão para afastar as moscas da cara, eram enormes varejeiras azuis e deslocavam-se numa nuvem ruidosa, zumbindo e azoinando, sequiosas da podridão. Quando terminou, o soldado ergueu-se e verificou a cor das fezes, estavam um bocado líquidas, interrogou-se se não estaria com disenteria, procurou sinais da tão frequente diarreia das trincheiras, mas não lhe pareceu, afinal de contas não lhe doía o abdómen e não viu sangue nos excrementos. Mesmo assim tomou nota mental para vigiar a próxima evacuação, limpou-se a um jornal, na ocasião uma página desportiva do Le Petit Journal, saiu da latrina, pegou no balde e lançou os excrementos para a fossa, guardou o balde, viu que gotas de fezes lhe tinham salpicado as costas da mão direita, praguejou, limpou- se, esfregando fugazmente a mão ao pano áspero das calças, e desceu rapidamente pela linha até ao abrigo do seu pelotão.
O posto de comando da segunda companhia de Infantaria 8 da Brigada do Minho estava transformado num verdadeiro escritório. Encostado à parede de Grants Post 175
encontrava-se o catre de arame para o oficial de serviço. Ao lado, alguns caixotes pregados como estantes para armazenar o que fosse necessário, aqui e ali eram visíveis velas de estearina e junto à entrada estava um caixote de munições a servir de mesa, com um banco encostado.
Sentado à mesa, os traços rudes do caixote disfarçados por uns trapos esfarrapados, o capitão Afonso Brandão preparava o relatório das três da tarde sobre a situação no sector sob o seu comando e sobre o vento, informação esta considerada relevante para avaliar a possibilidade de serem lançados gases tóxicos pelo inimigo. Por acaso, naquele dia 22 de Novembro, o vento vinha de leste, sendo por isso propício à utilização de armas químicas pelo inimigo. O documento que o capitão ultimava era o quinto do dia. Pelo menos, ninguém podia acusar o CEP de ignorar a burocracia. Ainda ontem Afonso chegara às trincheiras, depois da intrigante noite no Château Redier, e afadigava- se agora, em plena frente de guerra, com a papelada da companhia que chefiava.
Às seis da manhã já tinha enviado o “relatório das operações e das informações”, descrevendo a ocupação das trincheiras, o número de cartuchos consumidos pelas metralhadoras, as patrulhas, as obras de reparação das trincheiras bombardeadas, a visibilidade, a actividade visível do inimigo, a acção das suas metralhadoras e granadas, os sítios alvejados, o movimento dos aeroplanos e outras informações. Este primeiro documento era sem dúvida o mais importante, mas havia mais. As dez da manhã, Afonso tinha telegrafado as baixas das últimas vinte e quatro horas e ao meio-dia havia remetido o relatório dos trabalhos e requisições. O próximo relatório seria agora às quatro da manhã, com informações sobre o vento e a situação nas trincheiras. O problema é que a papelada não se ficava por aí, e o capitão suspirou com desalento ao lembrar-se de que teria ainda de ler com atenção a circular 22. 753, enviada pela brigada para clarificar a circular 12. 136 da 2.a Divisão, a qual, aliás, era uma ampliação da circular 9. 227 do CEP, com novas indicações para os soldados sobre o modo de colocarem e tirarem as máscaras de pé, deitados, em marcha, parados, a dormir ou acordados.