Выбрать главу

“Boches! Aos abrigos! “

O grupo desapareceu num ápice pelo emaranhado de trincheiras e bura-cos, deixando Resende só, chapinhando na lama. O capitão virou-se para todos os lados e não 179

viu ninguém. Com os olhos muito abertos, aterrorizados, olhou para cima à procura do temível inimigo, o boche maldito, ergueu-se e encostou-se ao parapeito, encurralado, sem saber o que fazer, a mão, trémula, sacando o revólver do coldre. Durou alguns longos segundos este momento de suprema desorientação e logo Afonso reapareceu.

“Falso alarme”, explicou sumariamente. “Venha por aqui. “ O capitão Resende suspirou de alívio e seguiu-o, transpirando apesar do frio, Mascare-nhas e as duas ordenanças a juntarem-se a eles, todos com cara de caso. Passa-ram por uma árvore carbonizada e Afonso apontou para o tronco.

“Bata aqui! “, disse a Resende.

“Como?”

“Bata aqui, homem! “, ordenou.

O capitão caloiro, obediente, embora sem perceber o propósito da agressão ao tronco queimado, levantou a bengala e bateu na árvore. O impacto produziu um surpreendente som metálico e o tronco deu um berro.

“Cuidado com isso, suas bestas!!”

Resende deu um salto, estupefacto. A árvore falava. Afonso e Mascare-nhas desataram a rir.

“Ó homem, isto é um posto de observação, camuflado em árvore”, expli-cou Mascarenhas. “Chama-se Betty e é uma das árvores de ferro que para aqui temos.”

“Vocês estão-me a gozar... “

“Então o que queria vossemecê?“, justificou-se Afonso. “Esta é a nossa tradicional recepção ao caloiro aqui nas trinchas, diga lá se não é uma maravilha!”

“Vão-se cardar! “

Os dois oficiais riram-se.

“Deixe lá que caem todos”, comentou Mascarenhas. “Quando entrámos pela primeira vez nas trinchas, os gajos da 1.a Divisão fizeram-nos a mesma coisa. Venha daí até ao posto de comando para bebermos um vinho do Porto e lamber as feridas. “ E lá foi o capitão Resende, o bigode desalinhado, a farda numa amálgama de lama escura e húmida, as botas cobertas de terra, arrastando-se penosamente pela trincheira suja e malcheirosa, na esperança de saborear um doce cálice com sabor a Portugal.

A entrada do abrigo do pelotão não passava de um buraco aberto junto à base do parapeito, várias tábuas pregadas e sacos de areia a reterem a lama cinzenta que teimava em se infiltrar pelas arestas. Matias Grande meteu pela toca, sentindo as tábuas da escada a rangerem a cada degrau. O abrigo estava iluminado por lamparinas e eram visíveis vários homens deitados ou sentados, pertenciam ao seu desfalcado pelotão. Alguns dormiam, um 180

fumava, outro catava piolhos do seu colete de pelica, um último lia uma carta numa pose pouco habitual, afinal de contas era raro encontrar quem soubesse ler naquele universo de analfabetos, homens rudes da serra e do campo que cresceram a trabalhar a terra e a zelar pelos animais e que a única educação que receberam foi a que a vida lhes deu. Matias pôs a mão no ombro do soldado que lia a carta.

“Daniel“, chamou.

O homem, magro, franzino e com olheiras, levantou a cabeça. Tal como Matias, mais alto e forte, usava matacões, uma barba cortada rente e que distinguia os soldados minhotos do resto da tropa portuguesa.

“Então? “, saudou Daniel.

“Tudo bem, vou ver se serro presunto.“

“Alguma merda?”

“Não, os balázios do costume, nada mais.“

“Já manducaste? “, quis saber Daniel.

“Caviar”, disse Matias, os olhos desviando-se para a carta. “Notícias da patroa? “

“Sim”, retorquiu Daniel, a sua atenção voltando-se de novo para o papel escrevinhado que tinha nas mãos.

“Alguma novidade lá na terra?”

Daniel, tal como Matias, era de Palmeira. Tinham andado juntos na brinca-deira, lavraram campos para o mesmo patrão, fizeram vindimas lado a lado, eram unha com carne nas trincheiras. Daniel muito religioso, como convém a qualquer minhoto, chamavam-lhe até Beato. Aprendera a ler com o pároco, era a única forma de entender a Bíblia. Já Matias, menos dado a misticismos, nunca encontrou grande motivação para a aprendizagem. Além do mais, os pais cedo o obrigaram a ir lavrar a terra, não queriam o peso de uma boca para alimentar que permanecesse improdutiva. Como resultado, ficou analfabeto.

“Está tudo bem, mas ela queixa-se de que o miúdo é endiabrado.”

“Um boche “

“Um boche”, assentiu Daniel, sorrindo.

Uma ratazana gorda correu desajeitadamente pelo abrigo, passando a um palmo da tábua de Matias e deixando atrás de si um rasto enlameado. O soldado observou-a a anichar-se por um buraco aberto nas paredes de lama.

“Mais?“, perguntou, olhando novamente para o amigo e esperando notícias de Palmeira.

“O perdigueiro da Assunta teve uma ninhada e o Zelito fez uma birra, quer um cãozinho.“

181

“Olha, a mim é que me dava jeito um cão”, riu-se Matias. “Já viste o Fritz chegar ao meu posto e levar com um perdigueiro nas trombas? “

Daniel ficou pensativo.

“Eu, se tivesse um cão, fazia já aqui um churrasco”, exclamou. “Dizem que os chineses lhes chamam um figo”

“Estás maluco”, disse Matias, puxando por uma manta. “Os bifes, se soubessem, deixavam de nos falar. Os camones adoram os cães!”

“Deixavam de nos falar? “, retorquiu Daniel. “E eu ralado, não percebo nada do que eles dizem!”

“Ó Daniel, vai-te quilhar”, concluiu Matias, sacudindo a manta para a libertar dos parasitas e das pulgas e deitando-se depois na tábua molhada e enlameada.

“Vai-te quilhar tu. “

“Vou mas é dormir, dormir e sonhar com gajas”, soltou Matias, a cabeça já debaixo da manta. “No estado em que estou até a Assunta marchava. A Assunta e o perdigueiro. “

“És um porco. “

“Cala-te lá que eu agora vou adunar e sonhar que estou a tratar do assunto com a Assunta. “

Sentiu a humidade a enregelar-lhe as costas, a lama da tábua a misturar-se com a farda suja e empapada. Praguejou baixinho. Odiava aquele mar de lama, não havia meio de se habituar a ele, detestava dormir com a roupa molhada, o frio a colar-se-lhe à pele e a penetrá-lo até aos ossos. Pensou que era inevitável um dia apanhar uma pneumonia, mas esse pensamento tornou-se lento e transformou- se subitamente num sonho. Tinha adormecido.

O posto de comando de Grants estava húmido e Afonso puxou o catre para junto do caixote de munições, de modo a permitir que os seus convidados se sentassem. Baixou-se para procurar a caixa com as bebidas e, ainda curvado, virou a cabeça para Resende.

“Vossemecê quer experimentar um whisky? “ “ Um quê?”

“Um whisky “

“O que é isso? “

“É uma espécie de aguardente escocesa.”

Resende abanou a cabeça.

“Quero lá saber dessas mistelas dos bifes. Dê-me lá mas é um bom porto. “ Afonso pôs a garrafa na mesa, era escura, o vidro sujo e sem rótulo, distribuiu três copos e despejou um dedo de vinho em cada um. Os três oficiais ergueram os copos.

“À nossa “

182

Depois de engolirem o primeiro trago, Resende ajeitou-se no banco.

“Então como é a vida por aqui? “, quis saber. O major Mascarenhas puxou de uma caixa branca, Embassy escrito a vermelho, e tirou de lá um cigarro, era um maço que vinha nas rações inglesas.