“Aqui não se vive, homem”, disse, acendendo o cigarro. “Aqui sobrevive-se.“
“Imagino.“
“Não imagina nada”, cortou o major. “Mas vai perceber depressa. O que a malta tenta é passar despercebida, provocar os boches o menos possível e ir fazendo pela vida. “
“Tem havido muitos combates? “
“Nem por isso”, disse Mascarenhas com um trejeito de boca, libertando uma baforada cinzenta do Embassy. “Nada que se compare com o que se passa com os camones, aquilo é que é bordoada da grossa. “
Mascarenhas olhou para Afonso, que se sentiu na obrigação de retomar a explicação.
“Temos sobretudo duelos de artilharia, missões de patrulha na terra de ninguém, tiros de sniper, rajadas de metralhadora, essas coisas que dão encanto à vida nas trincheiras”, disse Afonso. “As patrulhas na terra de ninguém aca-bam por vezes aos tiros, já lá perdemos alguns homens. Mas combates mesmo a sério, daqueles de envergadura, tivemos apenas quatro. O primeiro foi logo em Julho, quando a malta do 24, de Aveiro, ainda fresquinha-da-silva, fez um raide às linhas alemãs com trinta homens, só que as coisas não correram lá muito bem. “
“ Porquê?”
“Éramos ainda inexperientes, andávamos armados ao pingarelho e apanhámos uns maduros pela frente”, disse. “Além do mais, um oficial do 24 contou-me que tinham ficado com a impressão de que os boches já sabiam antecipadamente que ia haver um raide.”
“Sabiam, como? “, admirou-se Resende.
“Sei lá. Por espionagem ou por um desertor, qualquer coisa assim. Mas também porque éramos uns ingénuos. Disseram-me que, dias antes do ataque, a própria população francesa já comentava a operação. “
“Não acredito. “
“Pode crer. Sabe como é o pessoal, era tudo novidade, uma aventura, e facilitaram, puseram-se a falar em toda a parte sobre o que iam fazer. Resul-tado, as coisas acabaram mal.“
“E os outros combates?“
“Depois do espalhanço do 24não fizemos mais nada, de modo que os restantes três foram todos de iniciativa alemã”, explicou Afonso. “O primeiro raide dos tipos ocorreu em 183
Agosto, três semanas depois do nosso. Lançaram gases e atacaram com centenas de homens em Fauquissart, chegando a passear nas nossas linhas, e foi sobretudo o pessoal do 35, de Coimbra, que teve de se aguentar à bronca. Uma semana depois, os boches voltaram a atacar, agora ali em Ferme du Bois, mas a artilharia bateu forte e conseguiu impedir que eles chegassem às nossas linhas “
“E o terceiro raide? “
“Esse ocorreu há pouco tempo”, indicou Afonso, olhando de relance para Mascarenhas.
“Há uns dez dias, mais coisa, menos coisa”, referiu o major.
“Já envolveu o pessoal da 2.a Divisão. “
“Os outros não foram com a 2.a Divisão? “
“Ó homem, você anda no mundo da Lua ou quê?“, questionou-se Masca-renhas.
“Nós só entrámos nas trincheiras há pouco tempo. Pouco tempo, é como quem diz, fez ontem dois meses e já achamos muito. Mas a verdade é que quem aqui tem andado no duro têm sido os gajos da 1.a Divisão, esses estão a combater desde Maio, enquanto nós só chegámos aqui às trinchas a 23 de Setembro. E foi apenas há dez dias que tivemos um combate a sério, justamente quando desse raide inimigo. Até aí só tínhamos visto bombardeamentos e patrulhas.”
“O azar dos boches neste último raide foi o de terem encontrado pela frente aqui a malta de Braga”, exclamou, orgulhoso, Afonso.
“Ah, foi convosco? “, surpreendeu-se Resende, pousando o copo.
“Não”, disse Afonso. “Temos aqui dois batalhões de Braga, pertencentes à Brigada do Minho da 2.a Divisão. “
“A Barrigada do Minho? “
“A Brigada”, insistiu, com ar de quem não admitia brincadeiras com o nome da sua brigada. “Temos o 8, que é o meu, e o 29. Foi com o 29. “
“E o que aconteceu?”
“Eles avançaram ao fim da tarde em Ferme du Bois e entraram nas nossas linhas, mas a malta de Braga pô-los a correr num instante. “
“Ó Afonso, não estás a contar a história toda”, atalhou o major Mascare-nhas com um sorriso, apagando no chão o cigarro inglês.
“Qual história? “, pressionou Resende.
“Ah, umas coisinhas de nada”, disse Afonso.
“Umas coisinhas de nada, não”, corrigiu Mascarenhas. “Houve homens que abandonaram os postos e cavaram, outros foram feitos prisioneiros sem lutarem e, para 184
cúmulo, houve até um comandante que ficou de tal modo acagaçado que nem no dia seguinte se atreveu a ir à linha da frente saber o que tinha acontecido e mandar reparar as trincheiras danificadas. “
“Está bem, mas a verdade é que, uma hora depois de ter começado o ataque, os boches cavaram”, argumentou Afonso, defendendo a honra do batalhão de Braga, mesmo não sendo o seu.
“Cavaram uma ova!“, exclamou o major transmontano. “Andaram a passear na nossa linha da frente, foi o que foi, e só se foram embora quando lhes apeteceu e com uma carrada de prisioneiros às costas, os tipos pareciam uns pastores a levarem a carneirada.“
“Desculpa, mas houve sete louvores e duas promoções por distinção em combate”, lembrou Afonso.
“É”, cortou Mascarenhas, carregado de ironia. “E um oficial e três solda-dos foram punidos com prisão correccional e um outro oficial foi repreendido. Deve ter sido por bravura “
Afonso calou-se e engoliu as últimas gotas do seu porto. Fez-se um silên-cio embaraçado e Resende olhou para o relógio. “Já são quase cinco da tarde”, observou o lisboeta. Mascarenhas pôs-se de pé e os dois capitães também se levantaram.
“Daqui a pouco é a formatura”, disse o major, olhando para Resende. “Tenho ainda de o colocar a par da nossa rotina aqui nas trincheiras e das suas funções. “
“Então o que tenho de fazer, meu major?“, perguntou Resende, apalpando inconscientemente a barriga, cujo volume tinha o futuro seriamente ameaçado pela vida nas trincheiras.
“Para já, vai ser o oficial de serviço à meia-noite”, indicou Mascarenhas. “Terá de fazer durante duas horas a ronda das sentinelas sem nunca se abrigar e irá contar com um sargento com a mesma missão, mas em sentido contrário. Há duas formaturas gerais, uma ao amanhecer e outra ao anoitecer. Cabe- lhe ainda preparar os relatórios sobre a actividade no seu sector e terá de garantir que as suas trincheiras estão transitáveis a qualquer momento. “
“Muito bem”, disse o capitão lisboeta, antevendo sete dias de pesadelo e dieta forçada.
“Vou agora levá-lo aos seus aposentos e apresentar-lhe o pessoal. “
“Aposentos? “
“É mais um buraco”, corrigiu o major. Cruzou a porta e abandonou o posto de Afonso, despedindo-se do amigo com um aceno. “Até logo. “ 185
Os dois oficiais de Infantaria 13 desceram pela trincheira, a caminho de Ferme du Bois, e o capitão Afonso regressou ao seu relatório das três da tarde. A elaboração do documento tinha sido interrompida para a praxe ao caloiro e, por isso, o relatório teria agora de ser enviado com um grande atraso. Além do mais, era importante não esquecer a leitura da circular 22. 753. O oficial mirou o relógio da mesa e viu-o a assinalar as cinco da tarde em ponto.
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IV
A equipa de artilheiros tinha ordens para disparar três salvas às cinco da tarde. À hora exacta, os homens pegaram numa granada de duzentas e noventa libras, carregaram a Howitzer, o chefe da equipa regulou pelo óculo a elevação até aos quarenta e três graus e, quando ficou satisfeito, recuou.