“Atenção! “
Os homens taparam os ouvidos.
“ Fogo!”
A Howitzer deu uma violenta guinada para trás e vomitou uma língua- de-fogo pelo cano chamuscado, um trovão ensurdecedor encheu o ar e a grana-da saiu disparada em direcção às linhas inimigas. O projéctil afastou-se com um silvo sinistro, o assobio foi morrendo no céu até se calar, fez-se uma pausa de vários segundos, uma nuvem silenciosa ergueu-se do outro lado, a pausa pro-longou-se, finalmente escutou-se o longínquo estampido da detona-ção, eram notícias trazidas pelo vento a confirmarem que a granada tinha explodido como previsto. A operação foi repetida duas vezes, após o que os artilheiros recolhe-ram ao abrigo, não desejando estar junto ao canhão quando viesse a resposta.
Não foi preciso esperar muito. Em alguns minutos, uma chuva de grana-das começou a regar as linhas portuguesas. As sentinelas correram a abrigar-se do fogo largado pelas Morser alemãs e até os observadores camuflados se encolheram nos buracos.
As sucessivas detonações despertaram Matias Grande e os restantes homens de Infantaria 8 do torpor do sono. A terra tremia e alguns pedaços de lama caíram-lhe no corpo. O enorme minhoto ergueu-se na tábua, viu uma ratazana a roer-lhe a manta, sacudiu-a para afugentar o animal e sentou- se junto a Daniel Beato, que tremia. O abrigo estava frio e húmido, mas aquele era um tremor nervoso, de medo. Matias sentiu também as mãos a tremer e pôs a manta a cobrir-lhe as costas, mas de modo a esconder-lhe os membros. Uma granada explodiu perto e o fragor da detonação ressoou como um tambor.
Ao tremor das mãos vieram juntar-se os suores frios. A dezena de homens que se apertava no abrigo sofria em silêncio, gotas de suor no rosto, todos sentados olhando uns para os outros ou fixando os olhos no infinito ou nas paredes enlameadas do abrigo. Daniel era o 187
único com as pálpebras cerradas, os lábios murmurando uma oração rápida e sempre repetida quando chegava ao fim, fazendo assim pleno jus à alcunha de Beato.
“AveMariacheiadegraçabenditasoisVósentrasmulheresbenditófruto.“ Escutando a ladainha sussurrada da oração do amigo, por entre os baques e silvos da artilharia, Matias lembrou-se com um sorriso amargo da decepção que sentiu quando pela primeira vez chegou às trincheiras, dois meses antes, em Setembro de 1917. Imaginava antes que a guerra era uma grande aventura, repleta de acção e emoção, e ficou surpreendido com o volume de trabalho rotineiro e de bocejante tédio que preenchia a vida nas linhas. Grande parte do dia era ocupada com trabalhos da mais diversa ordem. Os homens carregavam munições e mantimentos, enchiam sacos de areia, consertavam vedações e redes de arame farpado, faziam buracos, procediam a drenagens, pregavam tábuas nos parapeitos, reforçavam paredes, efectuavam limpezas, tudo sempre com o estômago a apertar de fome e o corpo a tremer de frio.
A estafa era tanta que Matias começou a concluir que fazia trabalho de servo em condições de escravo e a viver como um homem das cavernas.
Quando vieram os primeiros bombardeamentos pesados foi uma alegria, os lãzudos pareciam uns garotos traquinas, estupidamente entusiasmados com o espectáculo feérico que iluminava a noite. Naquela altura, tudo cheirava a novidade, tudo prometia animação.
Ninguém teve verdadeiro medo, havia até quem saísse dos abrigos para ver como eram as coisas, a acção parecia excitante, palpitante, tremenda, a adrenalina disparava, a guerra era um alucinante jogo de luzes, cores, sons e emoções fortes. Sentiam-se bizarramente invulneráveis, turistas num inofensivo passeio, actores numa emocionante aventura. Matias achava então que as granadas não lhe eram destinadas, que as balas passariam sempre ao lado, e admirava-se quando via os tommies a abanarem a cabeça, estupefactos com a alegria infantil dos lãzudos. Mas, quando começou a ver os seus camaradas morrer, pedaços de carne espalhados pelo chão e membros mutilados em redor, tudo mudou, a morte deixou de ser abstracta. O que inicialmente não parecia passar de uma fantasia irreal transformou-se agora em perigo letal, deixou de ser brincadeira e começou a ser pesadelo. Vieram os tremores, o suor, o horror, a impotência. Matias começou gradualmente a perceber que a guerra era feita de oitenta por cento de tédio e rotina, dezanove por cento de frio polar e um por cento de puro horror, o mesmo horror que naquele momento o paralisava, a si e aos seus companheiros. Fugir dali estava fora de questão, mesmo que os regulamentos militares o permitissem. Os abrigos encurralavam-no, é certo, mas sempre ofereciam alguma protecção. Lá fora, sob a tempestade de aço e de fogo, suspeitava que não seria possível sobreviver muito tempo.
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“Os cabrões dos cachapins deviam era estar aqui”, resmungou Vicente Manápulas, que terminara havia uma hora o serviço de sentinela e tentava agora distrair as atenções do bombardeamento pesado que decorria no exterior.
Vicente era o mais rezingão soldado do grupo, não perdia oportunidade para flagelar os oficiais com palavras carregadas de revolta, mas a verdade é que se limitava a expressar de viva voz o que outros calavam em pensamento. O ressentimento das praças para com os oficiais e a multidão de militares com tarefas exclusivamente burocráticas era profundo e tema recorrente das suas conversas. Os soldados formavam uma comunidade fechada, unidos pela miséria extrema, tinham consciência de serem carne para canhão e sentiam-se esquecidos pelo país e espezinhados pelos chefes.
“Temos de aguentar”, comentou Matias laconicamente, cerrando os dentes para controlar o medo.
“Nós aqui na merda eles nos seus abrigos com camas, a viverem à grande nos quartéis-generais aquecidos com lareiras, a gozarem o prato nas brincadeiras c'as demoiselles, a alambuzarem-se nas messes c'as rações de carne de vaca, a emborcarem tintol servido em copos de cristal e a dormir'em lençóis lavados e perfumados”, enumerou Vicente com um esgar de desprezo.
Um outro lãzudo aproximou-se, quase gatinhando pelo soalho enlameado do abrigo.
Era Baltazar, um serrano do Gerês que costumava ser gordo e agora, com a pele enrugada e o cabelo prematuramente grisalho nas têmporas, mostrava um aspecto envelhecido, chamavam-lhe até o Velho. Sentindo uma espécie de comunhão do medo, que o levava a procurar os homens que com ele sofriam, decidiu animar o diálogo, apimentando-o com pormenores sobre as demoiselles, era uma maneira eficaz de distrair a mente do bombardeamento.
Noutro dia, em St. Venant, vi mesmo uma gaja a sair do quartel-general”, disse Baltazar. “Que categoria! “
Calaram-se, imaginando-a. Qualquer notícia sobre o aparecimento de mulheres causava sempre sensação.
“Era boa? “, perguntou Matias, sabendo que o Velho não era económico no uso da palavra “categoria”, essa era mesmo a sua expressão favorita desde que a ouvira da boca de um oficial.
“Sabes que não sou esquisito”, disse Baltazar Velho, encolhendo os ombros. “Lá na minha aldeia, em Pitões das Júnias, já pinei sansardoninhas bem piores, de bigode e tudo, o que é que vocês pensam? “
“Mas como é que ela era? “
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“Francesa ou flamenga, arruivada, grande e cheia de carnes”, descreveu, os olhos brilhantes.
“Um almazem? “, perguntou Matias.
“Um almazem”, confirmou o serrano. “Mas marchava cá com uma categoria. “ Uma sequência de violentas detonações ali perto fê-los calarem-se e olha-rem para a entrada do abrigo. A terra voltou a tremer e mais lama caiu do tecto.