Выбрать главу

“Porra! “, praguejou Vicente Manápulas. “Eles hoje não param!” Novo silêncio dentro do abrigo, abalado pelos estremeções e detonações que vinham do exterior. Até Daniel Beato calou a oração por instantes e virou-se, apreen-sivo, para a porta do abrigo.

“Espero que esta merda aguente”, disse Baltazar com fervor, verificando a solidez das paredes lamacentas.

“Vamos todos morrer na puta desta guerra!“, vociferou Vicente, claustro-fóbico naquele buraco. “Tenho cá um pressentimento... “

“Isto está a escacholar”, comentou Matias com ar tranquilo. O homen-zarrão de Palmeira tinha a qualidade de saber ocultar o medo por detrás de uma máscara de imperturbabilidade, apenas o tremor das mãos o traía. Matias dava importância ao bom ambiente no grupo e esforçava-se por acalmar os companheiros, em especial Vicente, que era particularmente supersticioso e a todos enervava com os seus maus agoiros. “Mas não há-de ser nada. “

As trepidações libertaram novos pedaços de lama do tecto. Os homens calaram-se, olhando para cima com alarme, analisando as tábuas que segura-vam as paredes do abrigo.

“Até me treme a passarinha!“, murmurou Baltazar, angustiado.“... ventre JesusSantaMariaMãedeDeusrogaipornóspecadoresagora.“, prosseguia Daniel, os olhos devotamente cerrados.

Mas as paredes aguentaram-se e, minutos mais tarde, os soldados reto-maram a conversa.

“Eu gostav'era de ver os oficiais aqui metidos”, resmungou Vicente. “Quando lhes chusm'a coisa xuega, pisgam-se todos.

“Os gajos são galrichos”, observou Baltazar. “Agafanham-se em abrigos de cimento e a malta é que fica aqui a bombar. “

Quando começaram a ter verdadeiro horror dos bombardeamentos, estes momentos deixavam-nos sem fala e sem reacção, permaneciam prostrados, encolhidos nos abrigos, quietos e inquietos. Mas agora já tinham aprendido a conversar, num esforço titânico para pensarem noutras coisas e distraírem as atenções da tempestade de fogo que lá fora se abatia sobre as trincheiras.

190

Chegaram até a tentar jogar às cartas, mas isso era pedir de mais, não se conseguiam concentrar e depressa desistiram, as suas mentes decididamente não se podiam abstrair da sombra de morte que sobre eles pairava naqueles penosos momentos de trovoada de ferro.

As conversas entrecortadas, as frases despejadas num fôlego e as palavras ditas como se queimassem eram o limite do seu esforço.

O velho prometeu há dois meses conceder-nos licenças p'ra irmos a Portugal, mas aqui a mim inda não me coube nada apesar de já ter direito”, queixou-se Vicente.

“Marranos. “

“Como é que queres que a malta vá se não nos deixam ir de comboio? “, perguntou Baltazar.

“Ist'é p'ra rir”, exclamou Vicente. “Dão-nos as licenças mas não nos deixam apanhar o comboio.

O “velho” a que se referiam não era Baltazar, mas antes o general Tamagnini Abreu, o comandante do CEP que, dois meses antes, em Setembro de 1917, estabelecera um sistema de quinze dias de licença para quem estivesse cinco meses em campanha. O

general aproveitou para autorizar os primeiros soldados a irem de licença a Portugal. Em Outubro, o ministro da Guerra aumentou o tempo de licença para vinte dias e consentiu que os soldados fizessem a viagem de comboio através de Espanha, à falta de navios para efectuarem a ligação, mas cortou essa regalia pouco depois. Não havendo outro meio de transporte, a proibição de usar os comboios traduziu-se, na prática, na interdição de gozar as licenças em Portugal. O general Tamagnini verificou também que, de todas as praças que em Setembro tinham sido autorizadas a irem a Portugal gozar duas semanas de férias, nem uma única regressara ao CEP Nesse mês de Novembro, as licenças foram aumentadas para um mês mas, como não havia barcos de transporte e o comandante do CEP desconfiava que qualquer soldado de licença em Portugal era um soldado perdido, as praças ficaram literalmente a ver navios. Estavam reunidos os ingredientes para lançar a grande confusão.

Nas trincheiras começou nesta altura a grassar um clima de enorme descontentamento entre a tropa, uma revolta ainda surda de quem se via com a oportunidade burocrática de gozar a licença, mas que não tinha a possibilidade real de exercer esse direito.

Eclodiu mais uma sucessão de detonações próximo do abrigo. As grana-das passavam tão perto que até se distinguiam os silvos, alguns curtos, outros alongados. Todos se calaram e, por instantes, voltou o silêncio dentro do local.

Mas não por muito tempo.

“Os cabrões não param”, notou Vicente, aproveitando a primeira pausa daquela sequência de explosões. “Isto dur'há meia hora e os cabrões não param.“ 191

Abel transpirava profusamente no posto de sentinela da linha da frente, perto de Punn House, ali em Neuve Chapelle, apesar da temperatura glaciar que durava havia semanas. O soldado entrara de serviço às cinco da tarde, justamente quando o bombardeamento começara, e não via a hora de terminar o turno e ir refugiar-se no abrigo, os ares cá fora não lhe pareciam saudáveis.

As ratazanas corriam desesperadas pelas trincheiras, fugindo dos sucessivos pontos onde ocorriam detonações. Os alemães varriam de bombas as posições portuguesas e Abel, o Lingrinhas entre os amigos, estava proibido pelo regulamento de procurar refúgio. Abel era um magro agricultor de Gondizalves cujas mãos calejadas de trabalharem a terra trocaram a rude enxada pela macia Lee-Enfield. Sabia que uma sentinela não podia abandonar o posto e não tinha como se abrigar. À falta de melhor, encostou-se à base da trincheira, junto à parede anterior, e ficou deitado na lama, evitando assim os estilhaços de metal e de pedra que, com a chuva de lama levantada por cada rebentamento, voavam por toda a parte, e por ali permaneceu quase toda a hora do turno.

Por definição, as trincheiras são locais desagradáveis. Mas ali, no sector do Lys, o desconforto atingia extremos devido às características do terreno. As posições ocupadas pelos portugueses eram constituídas por terras baixas e argilosas, bastando cavar cinquenta centímetros para encontrar água. Na época do degelo das chuvas, os drenos que cruzavam as linhas transbordavam, produzindo inundações gerais. Isto significava, na prática, que, ao contrário da generalidade das trincheiras, as linhas portuguesas não podiam ser cavadas em profundidade, sob pena de se transformarem em verdadeiras piscinas. Por isso, a parte escavada nunca excedia os sessenta centímetros, sendo as paredes dos parapeitos constituídas por sacos de areia ou de terra amontoados acima do nível do solo, uma solução menos segura mas a única que se revelava prática naquelas circunstâncias. Mesmo assim, a lama chegava aos joelhos em quase todas as trincheiras portuguesas durante o período das chuvas ou do degelo, e não era uma lama qualquer. Pegava-se ao corpo como cola e não era a primeira nem a segunda vez que os soldados ali deixavam as botas. Abel ficou uma vez com os pés presos naquela lama escura, tentou levantar as pernas mas não conseguiu, pôs as mãos no chão para melhor fazer força nas pernas e acabaram também elas por ficarem ali coladas. Permaneceu durante meia hora numa posição ridícula, os pés e as mãos pregados ao chão, e só conseguiu sair quando um companheiro escavou a lama com pás.

Já perto das seis da tarde, próximo da hora da rendição de sentinela, apareceu o sargento Rosa, de serviço de fiscalização à linha da frente, e agachou-se junto a Abel.

192

“Não se pode andar por aqui no meio das marmitas, faz mal à saúde”, ironizou o sargento entre duas golfadas de ar para recu perar o fôlego. “Ó Lingrinhas, tens espreitado pelo parapeito?“