portuguesas? Criar uma diversão para atrair reservas e atacar depois noutro ponto? Quais os sectores da linha que precisavam de reforços? O que fazer?
O tenente Cardoso já não sabia o que fazer. Os soldados inimigos deslizavam colados ao chão, evitando avançar directamente para Punn House, posição que estava bem guarnecida por si e pelos seus homens, procurando antes um envolvimento em pinça. Os portugueses disparavam consecuti-vamente para a terra de ninguém, mas nenhuma bala parecia atingir qualquer inimigo.
“Tu aí”, disse o tenente, apontando para Daniel. “Vai ali derrubar a porta do paiol e traz o que encontrares.“ Daniel foi ao paiol de reserva, colocado perto da linha da frente para emergências como esta, deu cabo da fechadura a tiro e arrastou a primeira caixa que encontrou para junto dos companheiros.
O tenente Cardoso arrancou a parte superior da caixa e inspeccionou o conteúdo.
Eram Mills bombs, as granadas arredondadas de fabrico britânico, o formato a lembrar uns ananazes anões.
“Boa!“, regozijou-se. “Vê lá agora se encontras uma Luisa e magazines de munições.“ A Lewis era uma metralhadora concebida pelos americanos e muito mais ligeira do que a tradicional Vickers, de fabrico britânico. Pesava doze quilos, mesmo assim demasiado pesada para uso portátil eficaz, mas perfeita para aquelas circunstâncias. Daniel encontrou uma Lewis no paiol e agarrou-a com o braço direito, enquanto o esquerdo pegava em dois magazines de munições, em forma de disco, cada um com noventa e sete balas, e voltou para o posto de combate.
“Qual de vocês se dá melhor aqui com a Luisa? “, quis saber Cardoso.
“Eu ajeito-me, meu tenente”, voluntarizou-se Matias Grande. “Então agarre lá na costureira e este seu camarada dá-lhe apoio com as munições”, disse o tenente, apontando para Daniel.
Matias pegou na metralhadora, encaixou um magazine de munições e apontou a arma pelo topo do parapeito. Verificou de imediato que a posição lhe dificultava o tiro e tomou uma decisão.
“Meu tenente”, chamou. “Preciso que lancem uma ronda de laranjinhas para eu poder saltar lá para cima” As laranjinhas eram as granadas Mills. “E vão buscar mais munições. “
Os homens agarraram nas Mills, mas, nesse mesmo instante, como que respondendo à solicitação de Matias, embora fosse de facto uma resposta ao pedido feito havia minutos pelo capitão Afonso, começaram a chover na terra de ninguém granadas disparadas pelas Howitzer portuguesas. Espalhou-se a confusão entre as forças atacantes e Matias 199
aproveitou para pular pelo parapeito para a terra de ninguém e posicionar-se deitado atrás do arame farpado defensivo e de uma pilha de sacos de areia. Viu alemães a atirarem-se para as crateras em frente, de modo a encontrarem refúgio que os abrigasse dos estilhaços das explosões portuguesas, e de imediato carregou no gatilho.
A Lewis sacudiu com violência e vomitou duas rajadas rápidas. Um alemão caiu ferido, várias balas bateram o solo em sequência e um outro soldado germânico também tombou. Os restantes aperceberam-se do fogo da metralhadora, infinitamente mais perigosa do que as Lee-Enfield que os portugueses estavam até aí a disparar daquele ponto, e deitaram-se todos no chão. Já não havia alemães a correr, encontravam-se agora tombados, a maior parte a rastejar para depressões no terreno, em geral cra teras, todos em busca de refúgio. As granadas portuguesas caíam, porém, demasiado longe, o que tinha pelo menos a virtude de isolar a força atacante e impedir a passagem de reforços, mas o problema é que o seu efeito sobre a infantaria alemã que se aproximara das linhas portuguesas era assim meramente psicológico.
Ouviu-se um apito na terra de ninguém e, num ápice, como que respon-dendo a uma ordem, levantaram-se das crateras várias nuvens de soldados alemães, todos a carregarem sobre as linhas portuguesas. Matias Grande apertou longamente no gatilho e a Lewis começou a saltar-lhe nas mãos, num frenesim louco, os sucessivos coices da rajada prolongada da metralhadora a impedirem-no de fazer adequadamente pontaria. Atrás do parapeito, os compa-nheiros largaram momentaneamente as Lee-Enfield e começaram a atirar Mills para a terra de ninguém. Vários alemães caíram com o fogo da Lewis e mais dois quando as granadas explodiram, mas Matias apercebeu-se de que não os conseguiria conter a todos e sentiu-se tomado por um acesso de pânico. Para agravar as coisas, o magazine de munições esgotou-se inesperadamente e deu consigo a carregar num gatilho que já não disparava balas. Nesse instante, as Maxim alemãs descobriram-no e começaram a chover projécteis junto ao solda-do português. Era de mais. Sem recarregar a Lewis, Matias atirou-se para trás, caindo aparatosamente na lama e no entulho da linha da frente portuguesa.
A situação deteriorou-se quando o grupo que defendia a linha em Punn House viu soldados inimigos a avançarem rapidamente pela direita e a saltarem para a linha da frente do CEP, a uns meros quinhentos metros de distância, algures perto de Tilleloy Sul, que estava a ser defendida por Infantaria 29, também de Braga. E o pior é que a Lewis de Matias se calara e os alemães em frente já se tinham apercebido disso, aproximando-se agora perigosamente, apesar do fogo furioso do punhado de Lee-Enfield manejadas em Punn House.
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“Os cabrões saltaram para a nossa linha”, gritou o tenente, anunciando o que todos já tinham visto com grande alarme. “A malta do 29 está tramada! “ Olhou com impaciência para a retaguarda. “O que estão a fazer a porra das nossas bacoreiras?“ As bacoreiras eram as metralhadoras pesadas Vickers. “Meu tenente, é melhor cavar daqui”, aconselhou o pequeno Vicente Manápulas, vermelho como um pimentão, enquanto recarregava a espingarda. “Isto tá a ficar xuega. “ O tenente apercebeu-se de que, sem a metralhadora de Matias na terra de ninguém a varrer as linhas inimigas e com as Vickers ocupadas com o flanco direito, não conseguiria travar a avalancha que lhe vinha em frente e que era agora uma questão de um ou dois minutos até os alemães lhes saltarem em cima. E, mesmo que conseguissem resistir ao ataque frontal, o que era improvável, estavam em perigo de serem apanhados de flanco pelos soldados inimigos que se encontravam na linha portuguesa em Tilleloy Sul.
“Vamos recuar”, decidiu. “Recuem, recuem! “
O pelotão disparou uma última salva para a terra de ninguém e abando-nou apressadamente o parapeito em direcção à trincheira de comunicação, o tenente a mostrar o caminho. Matias já tinha recarregado a Lewis e foi o último a sair, a metralhadora preventivamente apontada para cima dos parapeitos.
As minenwerfer começaram entretanto a disparar sobre Punn House, talvez alertadas pela infantaria alemã para aquele foco de resistência portuguesa. Uma sucessão de explosões abalou com violência as trincheiras naquele sector, e o grupo comandado pelo tenente Cardoso deslizou célere pela linha, os soldados correndo curvados e tentando proteger a cabeça.
Uma granada atingiu em cheio a trincheira de comunicação por onde seguiam os portugueses, produzindo um fragor medonho e levantando uma nuvem que envolveu o grupo. Caíram todos no chão e Matias, porque vinha mais atrás a fechar a fila, foi o único que olhou para o local da explosão, mesmo em frente. Ouviu os gemidos de um homem sem um braço, era o tenente Cardoso, estava estendido no chão e olhava, surpreendido e atordoado, para o coto ensanguentado que fora o seu ombro e que se agitava absurdamente no ar. Mas o que verdadeiramente ficou gravado para sempre na memória de Matias foram os dois segundos que se seguiram.