No primeiro segundo despenhou-se do céu um corpo decapitado, como se fosse um fardo pesado. Pof. Depois, outro segundo volvido, tombou a cabeça, como uma pedra.
Poc. Matias aproximou- se, o coração aos saltos, angustiado, não querendo ver mas querendo ver, olhou para a cabeça decepada e reconheceu, os olhos rolados para cima e a língua de fora na face semi-rasgada, o rosto do seu amigo Daniel, o Beato, o companheiro 201
de infância nas vindimas de Palmeira e pai do boche” Zelito, o homem franzino que ainda havia duas horas lhe dera notícias da terra e novidades sobre o perdigueiro da Assunta, o camarada de armas que rezava fervorosamente durante cada bombardeamento e cujas orações, feitas agora as contas, de nada lhe serviram, a não ser talvez poupá-lo a novas tribulações na miséria da guerra.
O posto de sinais animava-se ao ritmo de uma sinfonia de comunicações. Todos os telefones tocavam e os telégrafos despejavam informação em morse, num tut-tut-tutut-tut contínuo e incansável. O telegrafista leu a última mensa-gem, saltou da secretária e saiu apressadamente do posto, indo ter com o capitão Afonso Brandão, que fumava um nervoso cigarro junto à porta, a ordenança ao lado.
“Meu capitão”, chamou.
“O que é agora?“, perguntou Afonso, irritado, voltando-se para o telegrafista.
“Chegou há instantes a comunicação de que o inimigo já está a circular na linha da frente. “
“O quê?“, exclamou o capitão, vendo confirmarem-se os seus piores receios. “Onde?
“
“Não é muito claro”, retorquiu o telegrafista. “Mas a mensagem menciona Tilleloy. “
“O quê? “, admirou-se Afonso, muito alarmado.
“Tilleloy, meu capitão.“
“A estrada?“
“Não, meu capitão. Uma trincheira.“
“Ah”, expirou Afonso, aliviado. “Norte ou Sul? “ “Essa informação não consta. Diz apenas Tilleloy.“ “Informe imediatamente a brigada”, indicou.
“Sim, meu capitão.“
Se os alemães estivessem na Rue Tilleloy, a importante estrada que se prolongava desde Neuve Chapelle a Fauquissart sempre paralelamente à primeira linha, isso significaria sarilhos dos grandes. Sendo uma trincheira, isso queria dizer que a acção se encontrava circunscrita, em Neuve Chapelle, ao sector entre Sunken Road e Min Street.
Afonso sentia-se mais tranquilizado, mas queria a ajuda dos canhões.
“O oficial de ligação que ligue à artilharia”, ordenou. “Ela que bombardeie as posições à frente do arame farpado em Tilleloy, diante de Mastiff Trench, para impedir que o inimigo consiga reforços, mas tenham cuidado para não atingirem as nossas linhas, uma vez que não sabemos qual das Tilleloy está ocupada, se a Norte ou se a Sul. “
“Sim, meu capitão.“
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Afonso olhou-o para ter a certeza de que não havia equívocos. “Eles só entraram em Tilleloy, certo?“
“Em Neuve Chapelle foi só no sector de Tilleloy, meu capitão. Mas os boches estão a atacar forte em Ferme du Bois.“
“Isso é para o 13”, devolveu o oficial, fazendo um aceno de despedida. “Vai lá transmitir as instruções
O telegrafista voltou apressadamente para o posto e Afonso, impaciente, seguiu-o, ansioso por novas informações. Quando entrou no abrigo dos sinais havia uma outra notícia, esta boa, para variar. A acção da artilharia funcionara bem à direita e, em combinação com a infantaria, obrigara o inimigo a bater em retirada frente a Church e Chapelle Hill e o mesmo acontecia em Ferme du Bois. O problema era neste momento determinar o que se passava em Tilleloy e, já agora, em Punn House, o primeiro ponto donde fora lançado um foguete de SOS. Incapaz de conter mais a impaciência e a ansiedade que se apossara de si, Afonso fez sinal a Joaquim para o acompanhar e desceu em corrida as trinchei-ras, a pequena pistola Savage na mão, decidido a comandar a limpeza de Tilleloy.
O capitão encontrou as linhas mergulhadas na mais completa confusão. Havia fumo por todo o lado e os homens pareciam desorientados, correndo por aqui e por ali, desordenadamente e sem rumo e propósito visíveis, pareciam umas galinhas tontas. Ao percorrer a linha, Afonso deu com o posto de primeiros socorros e notou a enorme actividade à porta. Entrou no posto e deparou com poças de sangue no chão, homens feridos a gemerem nas macas e outros gaseados a tossirem convulsivamente, macas sujas por debaixo dos corpos, algumas com pedaços de carne solta, os médicos e os enfermeiros atarefados a fazerem garrotes e de tesoura em punho a cortarem peles e músculos, um deles a serrar uma mão esfacelada.
“Alguém esteve em Tilleloy ou em Punn House?”, perguntou Afonso para ninguém em particular.
Um médico lavado em suor, a bata branca manchada de sangue como se fosse um homem do talho, olhou-o de relance, reprovadoramente, e regressou ao trabalho. Um oficial deitado numa maca, junto à parede do posto, levantou timidamente o braço direito.
“Eu estive em Punn House”, disse, a voz fraca. Afonso aproximou-se e reconheceu o tenente Cardoso, com quem falara duas ou três vezes na messe e jogara umas partidas de bridge no quartel do Pópulo, em Braga. Cardoso jazia prostrado num canto do posto sem o braço esquerdo, a manga rasgada pelo ombro a exibir o coto esfarrapado e coberto de sangue escuro e fresco, aguardando que o tratassem e que lhe dessem morfina.
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“Os alemães estão em Punn House? “, perguntou Afonso, sentando-se de cócoras junto à maca e indo direito ao que precisava de saber.
“É provável”, murmurou o ferido com um esgar de dor, a voz fraca e cansada.
“Quando saímos de lá, eles já tinham tomado Tilleloy Sul e estavam a assaltar o nosso sector. “ Parou para recuperar o fôlego. “Fomos bombardeados e levámos com uma marmita em cima, mas o pessoal que escapou ficou lá, montando uma nova posição de defesa na linha B. “ Nova pausa em busca de golfadas de ar. “O resto já não sei porque entretanto apareceram os maqueiros e trouxeram-me para aqui neste estado.”
“Está bem”, suspirou o capitão, erguendo-se e afagando o cabelo do ferido. “Está descansado que vai correr tudo bem. É desta que vais para casa, Cardoso. As melhoras. “ Momentaneamente acabrunhado com o seu jeito desastrado de consolar o ferido, Afonso abandonou o posto de socorros e seguiu com Joaquim pela trincheira. Cruzou-se com um estafeta e mandou-o parar.
“Vais ao posto de sinais e entregas ao telegrafista um papel que te vou dar”, ordenou, enquanto remexia os bolsos à procura do bloco de notas.
Afonso encontrou o bloco no bolso do casaco e ajoelhou-se para rabiscar uns gatafunhos na primeira folha, suja com nódoas de gordura. Eram instruções para que se suspendesse o bombardeamento frente a Tilleloy Norte, que afinal poderia ainda estar ocupada pelo CEP, e que se prosseguisse o batimento perante Tilleloy Sul, onde confirmadamente entrara o inimigo. O capitão entregou a nota ao estafeta e, sem perder mais tempo, meteu por uma trincheira de comunicações em direcção à linha com a ideia de se aproximar de Punn House. No caminho deu com um grupo de quatro homens de olhar nervoso, pareciam desorientados.
“O vosso oficial? “, perguntou.
“Não sabemos dele, meu capitão”, respondeu um soldado.
“Perdemo-lo, a ele e ao resto do pelotão, no meio de toda esta barafunda. “
“Venham comigo”, ordenou.
Eram agora seis homens a dirigirem-se para o sector de Punn House, pensou Afonso que talvez conseguissem fazer a diferença, os combates também são feitos de momentos de inspiração e o que o inspirava agora era ajudar os soldados a defenderem a linha e a expulsarem o inimigo, não queria ver o seu batalhão gozado na messe dos oficiais da brigada nem diminuído aos olhos dos bifes. Quando chegaram perto de Punn House ouviram explosões de granadas de mão, o pop-pop-pop intermitente das metralhadoras e o silvo das balas a cruzar o ar, zzziiiim, algumas arrancando pedaços de madeira dos esqueletos das árvores carbonizadas.