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“Limpa”, disse Matias.

“Você aí”, indicou Afonso, apontando para Baltazar. “Fique aqui a vigiar a direita para não sermos apanhados por trás. “

Baltazar Velho plantou-se de sentinela à direita e os oito homens restantes flectiram pela esquerda em direcção a Tilleloy Sul, Matias sempre com a Lewis apontada para a frente a ziguezaguear pela linha.

Um vulto emergiu do fumo na trincheira e o português nem hesitou, só podia ser um alemão, abriu fogo com a metralhadora e derrubou o vulto, os homens do CEP

ultrapassaram o corpo do inimigo caído no chão e Matias voltou a disparar com a Lewis para o meio do fumo, apareceu um segundo alemão que ergueu os braços em sinal de rendição, gritando “Kamerad”, Matias cortou-o a meio com uma nova rajada, silvavam projécteis por toda a parte, em plena confusão os alemães pensaram que era um contra-ataque de grande envergadura, tinham perdido momentos antes a metralhadora e ouviam agora soldados portugueses a aproximarem-se rapidamente da posição onde se encontravam, saltaram todos pelo parapeito, desafiaram destemidamente as granadas do CEP que erguiam penachos de fumo e ferro na terra de ninguém e mergulharam nas nuvens de guerra que pairavam entre as linhas inimigas.

Os portugueses ficaram a ver os alemães a correrem de regresso às suas posições, saberiam depois que vários companheiros do 29 tinham sido feitos prisioneiros mas nunca chegariam a saber que era esse o verdadeiro objectivo daquele assalto alemão, apanhar prisioneiros portugueses para obter informa-ções que facilitassem o planeamento da ofensiva da Primavera, decidida onze dias antes, em Mons, pelo conselho de guerra inimigo. No parapeito, o único soldado português que ainda disparava sobre os alemães em fuga era Matias Grande. Afonso fez-lhe sinal para parar quando se tornou evidente que os alemães estavam já demasiado longe e seria difícil atingi-los em movimento, mas Matias ignorou-o, manteve o dedo furiosamente carregado no gatilho e assim permaneceu enquanto viu inimigos à frente e mesmo depois de eles terem desaparecido de vista. O

capitão admirou-se com a fúria do soldado e atribuiu-a erradamente a qualidades inatas de guerreiro. O que Afonso não sabia, não podia saber, era que, naquele dia, Matias tinha um amigo de infância para vingar.

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V

Até a luz amarelada das lamparinas sobre a mesa pareceu brilhar mais forte quando Marcel se colocou na porta. Afonso nem reparou nele, tão absorto estava a apreciar a bela mesa de mogno que enchia o centro do salão de jantar, a tábua assente em cinco pernas pesadas com cabochons salientes, os talheres de prata a enquadrarem as requintadas porcelanas de Sèvres, decoradas com gotas de esmalte e geometrias douradas sobre azul-forte, cuidadosamente alinhadas na toalha bordada à mão. A empregada entrou apressadamente no salão de jantar com a travessa nos braços, afogueada, as mãos protegidas da porcelana quente por um pano branco de cozinha. Vendo-a passar célere e corada, o mordomo encheu o peito de ar e, a voz firme e solene, anunciou o menu.

“Poulet rôti aux riz à la normande”, proclamou Marcel, o jeito cerimonioso e o tom altivo.

A rapariga rechonchuda, sorridente e aliviada, pousou a travessa fumegante na mesa e o barão Redier, agradado com o murmúrio de satisfação dos convidados como reacção ao anúncio da chegada da comida, abriu as mãos em direcção ao poulet.

“Voilà!”

“Jolly good!“, exclamou o tenente Cook, arqueando as sobrancelhas e elogiando a visão do que, por todas as aparências formais, seria certamente um lauto banquete. “Loolzs smashing. “

O capitão Afonso Brandão olhou para a travessa e não pôde deixar de apreciar a genial maneira francesa de transformar um prato banal num manjar de reis unicamente com recurso a um grandioso floreado semântico inserido num ambiente requintado. O

pomposamente designado poulet rôti aux riz à la normande não passava de um vulgar frango grelhado servido com arroz branco em molho cremoso. Lá em casa, na Carrachana, fazia-se melhor com nomes mais simples, pensou Afonso, empenhado no entanto em perdoar Cook pelo entusiasmo excessivo que manifestava por um prato tão simplório. Não era ele afinal inglês, habituado a violentas dietas de corned-beef, mushed potatoes, baed beans com bacon, sausages e scrambled eggs? Como censurá-lo pelo extraordinário efeito que um mero frango produzia antecipadamente nas suas papilas gustativas se o pobre moço estava habituado a sofrer os rigores da austera cozinha britânica?

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O oficial português encontrava-se de regresso ao palacete onde pernoitara dez dias antes, nos arredores de Armentières, e admirou-se por não se sentir admirado de ali estar de novo. Foi graças a uma conversa particular entre a bela baronesa e o maire da cidade que Afonso obtivera um novo boleto no Château Redier, embora desta feita não tivesse vindo sozinho. Também o tenente Timothy Cook, do Royal Flying Corps, recebeu o billeting certificate para pernoitar no palacete nessa noite fria de 1 de Dezembro.

“C'est bon?“, perguntou Agnès, fazendo sinal a Marcel para trazer o vinho.

“I say”, retorquiu Cook com a boca cheia pela primeira garfada, um pingo de gordura no bigode loiro. “Capital! Most excellent! “

Marcel aproximou-se com uma garrafa fechada e entregou-a à baronesa. Agnès pegou nela e exibiu-a aos convidados.

“É um Bordeaux Château Margaux de uma colheita de ano vintage, 1892. Alguma objecção? “

Os convidados entreolharam-se, sem saberem o que dizerem. Cook não era connaisseur e tanto lhe fazia. Já Afonso entendia de vinhos, mas apenas dos portugueses e não podia adivinhar que lhe estava a ser oferecido um néctar dos deuses produzido pelas melhores vinhas francesas.

“C'est bon”, disse finalmente o inglês, como diria a qualquer outro vinho que lhe pusessem à frente, mesmo o mais ordinário dos tintos, ele que estava mais habituado às frescas lagers e às tépidas ales, às mild, às bitter, às porter e às stout, aos halfa-pint de draft servidos num qualquer pub da Strand, de King's Road ou da estreita Neal Street.

Agnès envolveu a garrafa num guardanapo imaculadamente branco, retirou a cápsula de chumbo do topo do gargalo, limpou o bordo e a rolha com a ponta do guardanapo, inseriu o saca- rolhas metálico, tendo especial cuidado para não perfurar totalmente a rolha, e puxou devagar, como se fosse uma alavanca. A rolha soltou-se com um poc seco, Agnès limpou o interior do bordo com o pano do guardanapo, deitou um pedacinho de vinho no copo, cheirou-o para captar a fragrância, girou o líquido em contraluz para avaliar a cor, era tinto escuro, provou-o de olhos fechados, deixando o vinho percorrer as gengivas e estender-se pela língua para melhor experimentar a sua fruta, textura e intensidade, engoliu e esperou, sentindo o hálito a perfumar a boca. Após um breve momento, entregou a garrafa a Marcel.

“Pode servir”, disse.

Os convidados olhavam-na, espantados com o inesperado espectáculo. Todo o ritual tinha durado uns bons três minutos.

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“Onde é que aprendeu a fazer isso? “, quis saber Cook. “Esse, mon chère, é o meu segredo.”

A baronesa sorriu e desviou os olhos para Afonso. Tinha um vestido creme enfeitado com folhos trabalhados nas mangas. O capitão reparou no medalhão azul que trazia ao pescoço, mesmo por cima do discreto decote, e teve dificuldades em ocultar a sensação de encantamento que aquela francesa lhe produzia, a forma como abrira a garrafa era um inesperado extra que mais a aproximava dele.