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Depois de todos gabarem o poulet e o tinto tão finamente desenrolhado, a conversa deambulou pelas recentes aventuras de Afonso, que relatou em pormenor os acontecimentos que vivera dias antes nas trincheiras, mais as outras histórias que os seus camaradas de armas lhe contaram sobre o raide alemão a Neuve Chapelle e Ferme du Bois.

Os pormenores sangrentos e chocantes foram eliminados, por pudor e respeito pela senhora presente, ficando apenas os actos insinuados como de grande bravura. Causou particular sensação junto do casal anfitrião a narrativa do audacioso golpe de mão que expulsou os alemães de Tilleloy Sul, com Afonso a ter, todavia, o cuidado de omitir o pormenor do abate do alemão que se rendera.

Agnès mostrava-se discretamente encantada com o que lhe pareceu ser a coragem de Alphonse e dos seus homens e por duas vezes fez um brinde em homenagem ao capitão e ao Corpo Expedicionário Português. Preocupada em não marginalizar o outro convidado e em ocultar do marido o interesse que lhe despertava Afonso, a baronesa questionou igualmente o tenente inglês sobre o que vira e o que fazia na guerra.

“I say”, disse Cook, afinando a voz. “Neste momento sou oficial de ligação com o exército português “

“Ah bon “, surpreendeu-se Agnès.

“Indeed! “, retorquiu o tenente. “Tudo por causa do meu português. “

“Fala português? “, admirou-se, por seu turno, o barão Redier. “Right ho“, assentiu Cook. “Vivi três anos no Brasil. “ “Ah”, exclamou o barão. “No Rio de Janeiro? “

“Manaus.“

O barão ergueu as sobrancelhas, em sinal de que não reconhecera o nome. “Pardon “

“Manaus. É uma cidade no meio da Amazónia “

“E o que estava o senhor a fazer na Amazónia?“, atalhou Agnès, retoman-do o fio da conversa.

“Its a long story”, riu-se Cook. “Tive um desaguisado familiar em Hendon, onde vivo, e embarquei para o Brasil. No Rio conheci um carpinteiro inglês que trabalhava numa fazenda perto de Manaus e ele convenceu-me a ir conhecer a floresta. Fiquei por Manaus.

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Como tinha um pé-de-meia e jeito para a mecânica, adquiri um pequeno barco a vapor, no qual transportava seringueiros ou comerciantes pelo Amazonas ou pelo rio Negro até às fazendas. Ninguém falava inglês e lá tive de aprender português. “

“Alphonse”, chamou a baronesa. “Ele fala bem? “ “Não é mau”, retorquiu o capitão, olhando para o tenente inglês com ar de quem lhe está a prestar um favor.

“Depois voltei para Hendon e começou a guerra”, continuou Cook, ignorando a amigável provocação. “O meu jeito para a mecânica atirou-me para o Royal Flying Corps. “

“Não tem medo de voar? “, questionou Agnès, curiosa. “

Heavens, no”, devolveu o tenente, abanando enfaticamente a cabeça. “I love it!

Excepto quando aparecem os jerries, claro.”

“ Os jerries?”

“Os boches”, corrigiu Cook. “Chamamos- lhes jerries. “ “Não lhes chamam boches?“

“A Huns, who cares? “ Boc es, jerries, ritz

“Huns? O que é isso? Um nome? “

“Hunos”, explicou Afonso, interrompendo a conversa. “Os ingleses chamam-lhes hunos”

“Ah”, compreendeu Agnès. “Hunos, os bárbaros.“ “Yes”, confirmou Cook. “Mas eles também se chamam a si próprios hunos.“

“Ah sim?“, surpreendeu-se Afonso, suspendendo uma garfada no ar. “Nunca ouvi falar nisso!”

“Oh yes, they do! “, retorquiu o inglês, quase cantarolando. “Eles usam nos cinturões a frase Gott Mit Uns. Eu já vi “

“Isso é outra coisa”, exclamou Afonso com uma gargalhada. “Gott Mit Uns significa Deus está connosco.“

“Deus está com os hunos”, corrigiu Cook.

“Connosco”, insistiu o capitão.

Alphonse”, chamou Agnès. “Você fala alemão? “ Afonso olhou para a francesa e não pôde deixar de admirar a sua atenção aos pormenores.

“Un petit peu. “

“Ah bon“, exclamou a baronesa, em tom de admiração apreciativa. “E onde aprendeu? “

Afonso hesitou, considerando as consequências da resposta. Decidiu- se pela evasiva.

“Na escola. “

“Ensinam alemão nas escolas portuguesas? “

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Era uma boa pergunta. O capitão sentiu uma gota de transpiração a nascer-lhe na fronte e um calor súbito a encher-lhe as axilas. Todos na mesa se calaram e pararam de mastigar, fitando o português e aguardando a resposta com moderada expectativa.

Instintivamente, Afonso não quis contar a verdade, não quis dizer que frequentara o seminário em Braga nem quis falar do padre Fachetti que lhe ensinara alemão, mas não percebia exactamente por que razão se recusava a revelar esse facto. Ou, para ser verdadeiramente sincero, até percebia, embora nem a si mesmo o quisesse admitir. Falar do seminário seria dar indícios de que estudara para padre, o que o capitão pretendia a todo o custo evitar, nem pensar em deixar pairar na mente da francesa qualquer hipótese de considerar que ele lhe era inacessível, que as mulheres lhe eram indiferentes. Ainda admitiu a possibilidade de alegar que as escolas portuguesas tinham capacidades pedagógicas excepcionais, mas imediatamente compreendeu que essa seria uma afirmação absurda e susceptível de levantar suspeitas. Mais valia ir pelas meias-verdades.

“Digamos que os meus pais me colocaram numa escola especial, onde se aprendiam várias línguas. “

“Ah bon! “, concluiu Agnès, dando mostras de acreditar na resposta. “E que outras línguas aprendeu? “

“Para além do francês, do inglês e do alemão? “, perguntou Afonso. “Também aprendi italiano e latim. “

“Mas isso é uma maravilha”, encantou- se a baronesa. “Você é um poliglota formidável! “

“Molte grazie, signorina, le dispiace si non parlo francesi? “ disparou o português, exibindo o seu italiano cantado.

“Oh la la “, riu-se Agnès, batendo palmas e mostrando os dentes brancos e bem alinhados.

Seguiu-se uma nova ronda de brindes, com Afonso a largar mais umas tiradas em italiano, palavras que ninguém compreendia mas que produziram o seu efeito naquele subliminar jogo de sedução que se estabelecera entre os dois. Quando os italianismos se esgotaram, o barão voltou-se para o tenente inglês.

“Tudo isto vinha a propósito, não me perguntem como, da sua experiência na Força Aérea. “

“Right ho! “, exclamou Cook, como quem regressa à terra. “Onde ia eu? “

“Na Força Aérea. Veio do Brasil e alistou-se na Força Aérea para vir à guerra.”

“Oh yes!“, disse, “Alistei-me no Royal Flying Corps e lá vim eu para França. Naquela altura, há três anos, os aviões pareciam feitos de cartão e só serviam para voos de 213

reconhecimento. O meu primeiro aparelho foi um Farman HF-20, de fabrico francês, que tinha sido comprado à Aéronautique Militaire, a força aérea francesa. Depois, começaram a aparecer novos aviões e passei para um Nieuport 11, também francês, um grande avião, que estava armado com uma Vickers e já servia para combate. “

“E matou muitos alemães? “, quis saber Agnès.

“Estive mais envolvido em operações de reconhecimento. As minhas missões consistiam em fotografar as trincheiras, verificar o que se passava por detrás das linhas inimigas e, já agora, sobreviver às antiaéreas dos jerries. Mas houve uma vez em que abati um Fokker “