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De seguida, os escoceses, os franceses e os belgas. No patamar mais abaixo estão os indianos. Depois, os argelinos. Por último, os portugueses, os campeões da porcaria “ Fez-se silêncio.

“Isso não é simpático”, cortou Agnès, agastada com o rumo da conversa e com os comentários do tenente, que considerou desagradáveis e desnecessários.

“Pediram-me a verdade e eu dei-vos a verdade”, devolveu Cook, fazendo um gesto de impotência. “Aqui o capitão Afonso já conhece as minhas opiniões e, tanto quanto me pude aperceber, até concorda. “

Afonso sentiu que tinha de dizer alguma coisa. Fez um uh uh com a garganta, afinando as cordas vocais antes de falar.

“É um facto que as trincheiras portuguesas estão longe de serem um modelo”, admitiu. “Temos um problema com o nosso quadro de oficiais que, em geral, não acredita na participação de Portugal nesta guerra. Os homens estão a ficar cansados, não foi ainda feito roulement das tropas e há uma gra-dual deterioração da disciplina. Como consequência, por exemplo, as latrinas não são convenientemente limpas e há lixo a acumular-se nas trincheiras. Para além disso, não há hábito em Portugal de se tomar regularmente banho. A campanha dos higienistas, que se propagou pela Europa no século passado, não chegou ao nosso país, onde se considera que o banho é um prazer narcisista de mulheres ociosas e fúteis, quase um pecado. Impusemos aos nossos soldados a obrigatoriedade de um banho semanal, mas a maior parte acha isso um exagero e muitos evitam a água, consideram até que a sujidade é a melhor defesa contra as doenças, e, ainda para mais com o frio que está e a que não estamos habituados, os soldados fogem do banho como o diabo da cruz. É um problema que temos de resolver. “ 217

“Mas olha, Afonso, que o pior são mesmo os vossos oficiais”, insistiu o inglês. “Os soldados ainda vá que não vá, vão mostrando boa vontade, mas os oficiais portugueses... “

“Admito”, concordou o capitão. “Temos muitos oficiais contrariados com o esforço de guerra, são pouco pontuais, não executam imediatamente as ordens que recebem, passam a vida a falar mal de tudo e estão-se nas tintas para o bem-estar dos seus homens.

Com oficiais assim, é realmente difícil motivar os soldados. “

“Para ser inteiramente justo, há um outro problema que não mencionaste e que contribui muito para o problema”, atalhou o tenente Cook.

“Qual? “

“A natureza das próprias trincheiras ocupadas pelas vossas tropas”, disse o oficial britânico. “A entrega do sector de Neuve Chapelle aos portugueses foi um presente envenenado. Neuve Chapelle está situada num lamaçal baixo, dominado pela cumeada de Aubers-Fromelles, uma posição elevada ocupada pelos jerries. Quando chove, os homens que defendem Neuve Chapelle têm de levar não só com a água que lhes cai em cima como com a que vem do sector boche pelo fosso que desce pelo caminho Estaires-La Bassée. A consequência é que as trincheiras estão sempre inundadas de água e lama e tornam vãos todos os esforços de limpeza. É por isso que quem se encontra em Neuve Chapelle está destinado a viver como um rato. “

Mas o barão Redier já nada ouvia, sentia-se agora mais preocupado com a observação sobre o que se passava nas trincheiras francesas e insistiu com Cook.

“Você colocou as trincheiras francesas só um grau acima das indianas. “

“Yes.“

“C'est pas possible!“, exclamou, abanando a cabeça e recusando-se a aceitar tal comparação.

“E, no entanto, é verdade. “

Afonso decidiu ir em socorro do seu anfitrião.

“Sabe, monsieur le baron, é um facto que as trincheiras portuguesas e francesas são mais sujas do que as inglesas e que os nossos hábitos de asseio são menores do que os dos nossos aliados”, disse. “Mas é um exagero reduzir a qualidade de um exército à limpeza das trincheiras e aos hábitos de higiene dos homens. Os ingleses podem ser muito limpos e organizados, mas, do ponto de vista militar, os franceses apresentam melhores tácticas de combate. “

“Ah bon?“, soltou o barão, a auto- estima a regressar. “Os ingleses acreditam no sistema de encher a linha da frente de soldados quando o inimigo ataca, mas os franceses já 218

perceberam que isso é disparatado e, tal como os alemães, concentram as suas forças na retaguarda”, exemplificou o capitão.

“Qual é a diferença? “

“A diferença é que os ingleses perdem inutilmente muitos homens nos bombardeamentos preliminares do inimigo, enquanto os franceses e os alemães os protegem na retaguarda e só os mandam para as primeiras linhas quando é mesmo preciso.

É mais inteligente. “

O barão olhou para o tenente Cook com ar triunfal. “A lors “

“I agree”, retorquiu o inglês, concordando com a observação de Afonso. “Eu e o capitão já falámos muito sobre isto, as nossas tácticas são excessiva-mente inflexíveis e conservadoras. Infelizmente, os nossos altos oficiais são todos da velha escola e resistem a modelos inovadores e mais dinâmicos. Como diria aqui o nosso amigo Afonso, é um problema que temos de resolver. “

“E o pior é que o nosso exército está a beber da doutrina inglesa”, disse o capitão português, rindo-se. “Ou seja, imitamos os ingleses no que eles têm de pior e não os imitamos no que eles têm de melhor. “

O esguio relógio de caixa alta encostado à parede, um antigo regulador vienense Biedermeier, deu um estalido e, acto contínuo, assinalou ruidosamente as nove da noite, o mostrador prateado e o mecanismo de grande sonnerie a funcionar na perfeição. Agnès achou que já chegava de comparações entre exércitos. Percebeu que, quando os interlocutores eram de nacionalidades diferentes e decidiam ser sinceros, estas conversas resultavam por vezes humilhantes para alguns. Era preciso tacto, algo que manifestamente se encontrava ausente naquela mesa. A refeição estava concluída e havia, pois, que aproveitar os oportunos gongos do Biedermeier e o tom descontraído desta última intervenção de Afonso para fechar o assunto e não o voltar a aflorar. Findos os gongos, a francesa levantou-se da mesa, determinada a agarrar a oportunidade.

“Msieurs”, anunciou. “Façam o favor de seguir para a sala de estar, onde nos esperam os digestivos e onde eu vos vou mostrar um objecto de arte que decerto vos irá surpreender.”

O som do piano era abafado pela imensa algazarra que enchia o salão. O fumo do tabaco, espesso e denso, flutuava como uma nuvem dentro do estaminet “A Cambrinus”, em Merville, mas ninguém parecia incomodado, a piores e mais perigosos fumos estavam todos já habituados nas trincheiras. Junto à janela, um tommy magrinho deslizava os dedos pelo piano barato, desafiando vigorosamente a cacofonia das conversas com um fox-trot 219

animado, os versos incompreensíveis para os lãzudos mas vagamente acompanhados por alguns ingleses meio entorpecidos pelo álcool.

“If were the only girl in the world... “

Uma rapariga magra, um avental sujo sobre o ventre, ziguezagueou, esguia, por entre as mesas cheias de homens barulhentos, um tabuleiro com copos de cerveja blanche na ponta dos dedos da mão direita. Baltazar Velho viu-a e esticou a cabeça.

“T'es bonne!“, rugiu o veterano, insinuando um convite sexual. “Mademoiselle coucher avec moi? “

A rapariga sorriu e prosseguiu sem responder. Estava habituada aos avanços dos soldados, aos grosseiros piropos de caserna e ao desajeitado patois de francês das trincheiras, feito de um conjunto limitado de palavras, como compris, pas compris, bonne, pas bonne, jinish, coucher avec, manger, promenade e pouco mais.