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O grupo abandonou a cave e voltou à rua, deixando os adolescentes para trás.

“Uma miúda desta idade! “, exclamou Baltazar. “É pecado. “ “E ir às buscates não é pecado? “, quis saber Abel.

“Ir às buscates é necessidade”, explicou Baltazar. “Mas crianças é pecado.“

“Sei d'um tipo que pinou uma destas refugiadas”, comentou Vicente Manápulas.

“Uma miúda como esta?”

“Sim, novinha. “

“E o que é que ele achou? “

“Uma maravilha”, respondeu Vicente. “Disse-me que tava aflit'e qu'a refugiada lh'aditou bem a mingalha. “

Riram-se todos nervosamente.

O barão Redier já se tinha escusado perante os hóspedes e recolhido aos seus aposentos. Era um homem de hábitos, gostava de rotinas, de passear pelos mesmos sítios, de comer os mesmos pratos, de dormir à hora certa. Agnès ficou a fazer sala com os dois oficiais junto à lareira, ela com um champagne na sua cadeira de balanço, Afonso instalado no canapé com o habitual whisky, Cook com um porto num cadeirão de mogno estofado e braços de serpentinas. O inglês puxou de uma caixa de charutos de madeira, o topo assinalando Tabak-en-Sigaren, registado pela P. G. C. Hajenius, a célebre casa de tabaco da avenida Damrak, em Amesterdão, abriu-a e ofereceu Coronitas aos dois companheiros, que 223

declinaram, acabou por acender ele próprio um dos curtos havanos, que aspirou com gosto, o aroma quente e agradável do charuto a encher a sala com o seu perfume tropical.

Conversaram sobre tudo e sobretudo sobre a guerra, o tema que dominava as suas vidas. O

capitão mostrava-se particularmente interessado em perceber como é que os ingleses viam a guerra, se a viam de forma diferente dos portugueses, e o cálice de porto pareceu ter soltado a língua ao tenente Cook. Agnès tentava igualmente entender se o que lhe diziam sobre as hostilidades era verdadeiro ou falso, se os alemães eram mesmo cruéis e cobardes como os descrevia a imprensa, se a guerra ia ou não acabar. O tenente Timothy Cook, com três anos de experiência no conflito, revelou-se uma verdadeira mina de informação.

All lies”, exclamou o tenente após uma baforada, não hesitando em considerar mentirosas muitas das notícias publicadas nos jornais. Percebeu a confusão da sua interlocutora e traduziu para francês: “Mensonges. “

“Mensonges?”

“Yes”, assentiu. “Os poilus chamam a isso bourrage de crâne. É como se os jornais fossem uma fábrica de produzir mentiras.”

“Par exemple? “

“Oh, sei lá, tanta coisa! Olhe, uma vez estive em Champagne durante uma semana, a testar um Farman num aeródromo francês, e as coisas apresentavam-se tranquilas. Pois li nos jornais que tinha havido ali uma poderosa ofensiva alemã que fora travada sem que o exército francês tivesse recuado um único metro. All lies. Outra vez foi o contrário.

Quando da ofensiva do Somme, em que parecia que o inferno tinha descido à terra, os jornais noticiaram que estava tudo calmo na zona da frente. “ Agnès ficou a fitá-lo, confusa.

“Seja”, concedeu. “Mas não é verdade que os boches são cruéis? “

“I say”, retorquiu Cook. “Não mais do que nós. Se nos virem à frente, tentam matar-nos, mas não é isso afinal o que nós também Lhes fazemos? Para ser inteiramente honesto, eu diria que alguns até são uns very decent chaps. Um amigo meu que está nos Royal Jelch contou-me que, durante uma ofensiva desastrosa ali no sector de Béthune, milhares de homens nossos ficaram caídos na terra de ninguém, feridos e a agonizarem.

Pois os boches, parado o ataque, não dispararam um único tiro durante a noite, deixando os nossos maqueiros irem buscar todos os feridos e até muitos mortos.”

“Não me diga que vocês gostam dos boches. “

“Don't get me wrong”, disse Cook, abanando a cabeça. “Se vir um à minha frente, mais facilmente o abato do que o faço prisioneiro.”

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“A sério? Fazer prisioneiros dá muito trabalho, explicou, fazendo uma curta pausa para aspirar a sua Coronita. “Alguns oficiais não hesitam em darem ordens implícitas para não fazer prisioneiros. “

“E isso quer dizer.”

“Matá-los on the spot, não dar tréguas a ninguém”, esclareceu o tenente, largando o fumo retido nos pulmões.

“Vocês fazem isso? “

“Right ho!“, confirmou. “Se estamos com pressa ou particularmente aborrecidos porque um amigo nosso foi morto, vai tudo de enfiada. Mas devo dizer que, a este respeito, os piores são, de longe, os canadianos e os australianos, que têm a fama de matarem todos os boches que se rendem. Não se brinca com eles.”

“Mon Dieu.”

“C'est la guerre”, concluiu Cook, utilizando a expressão então muito em voga sempre que se mencionavam as desgraças provocadas pelo conflito.

Como acontecia quando se falava da guerra, a conversa enveredara por caminhos desagradáveis e Afonso sentiu que era necessário inflectir o rumo. Por isso, aproveitou a pausa para tentar conhecer Agnès.

“Deve ser difícil a uma mulher bonita e encantadora como a senhora estar a viver neste recanto violento de França. “

Agnès sorriu, agradada com o piropo.

“C'est pas facile”, disse ela. Encarou Afonso, sorriu sedutoramente e acrescentou:

“Mas, às vezes, tenho a felicidade de conhecer uns oficiais très charmants que me deixam encantada.”

O português ia-se engasgando com o whisky, não estava à espera desta resposta, as senhoras em Portugal costumavam ser mais passivas no jogo da sedução. O capitão ficou sem saber o que dizer. Engoliu em seco, muito corado, e prosseguiu sem acusar o toque.

“Imagino que... uh... com os soldados todos na rua, uh... não possa andar por aí a passear à vontade. Como consegue preencher o seu tempo? “

“Leio. Leio muito. “

“Ah sim? E o que lê?”

Oh, um pouco de tudo. Stendhal, Balzac, Flaubert, Dumas, Daudet, Maupassant. “

“ E de qual gosta mais?”

“Não sei. Talvez Dumas, diverte-me. “

Afonso pousou o copo de whisky.

“Eu também gosto de ler. “ “E o que lê em Portugal? “

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“Bem, não temos tanta variedade como vocês aqui em França, mas aprecio Eça de Queiroz e Júlio Dinis. “

“Eu já li um romance português”, comentou Cook. “Ah é? “, surpreendeu-se Afonso. “E qual? “

“Chamava-se O Guarani.”

“O Guarani? “, interrogou-se o capitão, fazendo uma careta. “Nunca ouvi falar. De certeza que era esse o título? “

“Sure. O autor era José de Alencar. “

“Tem piada, não conheço. Onde encontrou o livro? “ “No Brasil.”

“Ah, não deve ser português, é certamente um escritor brasileiro. Gostou?”

“gostei, não percebi algumas palavras”, riu-se o inglês. “Mas acho que sim. “

“Era melhor ou pior do que os romances ingleses? “ “Era diferente. “

“E o que se lê em Inglaterra?”, quis saber Agnès, com pouca vontade de voltar ao jogo das comparações. “Charles Dickens? “

“Sim, esse é o nosso maior nome, depois de Shakespeare. Mas há outros. “

“Por exemplo? “

“Oh, tantos. Thackeray, as irmãs Bront, Eliot, Trollope, Stevenson, Hardy, Kipling, Conrad... “

“Pois eu dos autores ingleses só li aquele romance de Dickens passado durante a Revolução Francesa.”

“A Tale of Two Cities. Gostou? “

“Oui”, riu-se a francesa. “Chorei muito no fim. “ “Thats Diclnens, all right”, concordou Cook com um sorriso conhecedor.

“E qual é o escritor de que gosta mais? “

“Acho que é Stevenson, aprecio o seu sentido de aventura, o gosto pelo exótico. Mas olhe que ando agora a ler um romance que saiu há pouco tempo e que é muito bom, muito original, muito profundo. “