“Do que trata?”
“O livro chama-se Of Human Bondage e é a história de um homem que se apaixona obcecadamente por uma mulher, mas ela não quer saber dele para nada. O que é extraordinário neste romance é que o leitor entra na cabeça da personagem e começa a pensar como ela, a perceber os seus sentimentos, a compreender as suas reacções, a antecipar os seus movimentos. O leitor transforma-se na personagem. “
“Parece interessante”, concordou Agnès. “Quem é o autor? “ “Somerset Maugham.
É um escritor novo, eu próprio nunca tinha ouvido falar dele. “ 226
“Pois olhe que o romance que comecei agora a ler é o contrário, está até a dar-me dores de cabeça. “
“Então e porquê? “
“Porque a história não avança. Mon Dieu, até dá a impressão de que não tem história. “
“E que obra-prima é essa? “
“À la recherche du temps perdu. É um título que me parece adequado porque já ando à procura do tempo que estou a perder com ele. Veja lá que as primeiras cinquenta páginas são gastas com uma cena em que a personagem está deitada na cama à espera de que a mãe lhe venha dar o beijo de boa-noite. São cinquenta páginas nisto! “ Riram-se todos.
“E quem é o génio que escreveu essa obra de arte? “ “Marcel Proust. “
“Não vai longe”, sentenciou Cook.
“Não diga isso, o livro até está extraordinariamente bem escrito. “
“Mas qual é a história? “
“É esse o problema, ainda não percebi a história”, observou Agnès, pensa-tiva. “É
certo que vou ainda no princípio, mas parece-me que a personagem está à procura de coisas da sua memória, de coisas perdidas no tempo, daí possivelmente o título. É algo estranho mas dá-me a impressão de que, talvez mais do que de histórias, este é um livro feito de sensações, de impressões, de odores, de paladares, de sons, de cores, de emoções, de afectos. Eu diria que é um grande fresco pintado de nostalgia, de momentos mágicos de infância, de pequenos nadas.”
“Olhe, eu tenho um amigo que uma vez me fez a definição perfeita do que é um bom livro”, disse Cook, efectuando uma pausa teatral para expelir uma baforada perfumada da sua Coronita. “Um bom livro é aquele que está bem escrito e tem uma boa história. Se o livro está bem escrito mas a história é má, o livro não é bom. Se o livro tem uma boa história mas está mal escrito, também não é bom. O livro só é bom se tiver uma boa história e estiver bem escrito. “
A lenha na lareira crepitava suavemente e os três encostaram-se nos respectivos assentos, tranquilos e serenos, a saborear o momento e a digerir aquela ideia. Todos recordaram os romances que leram ao longo da vida, pensaram nos que tinham boas histórias mas estavam mal escritos e nos que estavam bem escritos mas tinham más histórias. E pensaram sobretudo naquelas obras, raras e preciosas, que, com palavras simples e elegantes, frases graciosas e bem estruturadas, poderosas até, contavam histórias inesquecíveis e arrebatadoras. Sim, concordaram, esses é que eram os livros realmente 227
bons. Quantas excelentes histórias não se desperdiçaram em maus textos, quantos bons redactores não se perderam em más histórias? É como a pintura, considerou Afonso. De que serve ter boa técnica se não se tiver imaginação criativa? De que serve ter imaginação criativa se não se dominar a técnica de pintura? Não está uma sempre ao serviço da outra, dando e recebendo, mudando e evoluindo, transformando-se e influenciando-se?
O som metálico e distante do Biedermeier a dar horas na sala de jantar encheu o silêncio. Por associação de ideias, quase sem querer, Afonso lembrou-se então da promessa feita pela baronesa ao jantar.
“M'dame, há pouco referiu-se a um objecto de arte surpreendente... “
“Oui”, exclamou Agnès, o rosto abrindo-se e apontando para um ponto da parede acima de uma estante. “É aquele quadro ali. “
Os dois oficiais viraram-se naquela direcção e repararam, pela primeira vez, num pequeno quadro realmente estranho, era uma paisagem pintada de maneira pouco ortodoxa, o céu cortado em formas geométricas de diferentes tons de azul, as casas transformadas em rectângulos tépidos, as árvores pareciam triângulos verdes.
“Good heavens! “, soltou Cook, os olhos arregalados. “O que é aquilo?”
“Cubismo”, explicou a baronesa, divertida com o ar perplexo dos dois militares.
“ Cubismo?”
“É uma nova corrente artística, muito chic, muito avant garde”, indicou Agnès.
“Aquele quadro ali é de Robert Delaunay e comprei-o há uns quatro anos na galeria Kahnweiler, em Paris. “
“Mas é horrível”, disse Cook com um esgar de repulsa. “Eu diria que é diferente, original talvez. “
“Mas a natureza não é assim, o céu não é assim, está tudo mal pintado. “
“Não está mal pintado”, assegurou a francesa. “A ideia do cubismo não é a de representar o objecto tal como o vemos, mas tal como o conhecemos. O céu tem vários tons de azul porque sabemos que o céu é assim, a intensidade do seu azul varia com a luz do dia. “
“Its ghastly! “, repetiu o oficial britânico, ainda horrorizado com o que observava e insistindo na ideia de que não via qualquer virtude artística no quadro. Para não dar tempo para que se exibissem mais objectos do género, susceptíveis de ofenderem a sua sensibilidade estética, Cook esmagou no cinzeiro o pouco que restava da Coronita, ergueu-se do cadeirão e bocejou. “Meus amigos, foi agradável mas já são onze da noite e estou com sono. As minhas homenagens, madame, e os meus agradecimentos. Afonso, old chap.
Cheerio and behave yourselfl.”
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“Bonne nuit! “
“Até amanhã, Tim. “
O inglês saiu e Agnès e Afonso ficaram sós.
Os lãzudos caminhavam agora pelos movimentados passeios da principal avenida de Merville, evitando o pavimento enlameado da rua, ocupado por cavalos e algumas carroças, e a animação do centro da vila deixou-os mais alegres. Seguiram pela avenida até chegarem a um edifício cor de tijolo perante o qual se aglomerava um considerável número de soldados, era a porta do bordel, Le Drapeau Blanc escrito numa tabuleta vermelha acima da entrada.
“Ena”, comentou Baltazar. “Tanta mingalha aflita! “ Os soldados faziam fila, eram, à vontade, mais de uma centena. Misturavam-se ingleses, escoceses e portugueses numa grande algazarra, cada um esperando a sua vez, quase todos em grupo, eram raros os homens que aguardavam sozinhos, multiplicavam-se as piadas e as gargalhadas. O bordel tinha sido montado pelas próprias autoridades francesas para servir as tropas daquele sector, e o Le Drapeau Blanc era apenas um dos muitos existentes na retaguarda das linhas aliadas. Havia bordéis para oficiais, mais discretos e caros, onde até se conversava com as prostitutas, enquanto os soldados se contentavam com versões industrializadas e despachadas, sem tempo para grandes conversas porque o tempo urgia e a clientela estava à espera, verdadeiras fábricas de sexo massificado e em série.
Matias e os seus amigos juntaram-se à fila. Diante de si encontravam-se uns ruidosos escoceses, facilmente reconhecíveis pelos kilts de lã Black Vatch do regimento highlander e boinas Tom O'Shanter. Os escoceses riam-se alarve-mente e davam sinais de estarem embriagados. Mas, logo a seguir, Matias reconheceu dois camaradas do 8 e foi ter com eles.
“Então? “, saudou-os. “Vieram às buscates? “
“Viemos pois”, confirmou um dos portugueses, um rapaz chamado Victor. “Mas isto ainda vai levar um bom bocado. “