A pergunta ficou a pairar na sala.
"Qual é a resposta?"
O americano encolheu os ombros.
"Não sei. O que sei é que a vossa polícia entrou imediatamente em contato com o serviço português de informações, o SIS, e estes falaram com o Greg, que fez um telefonema para Langley."
Tomás olhou para Greg Sullivan e, como se tivesse acabado de ser iluminado, apercebeu-se da verdade. O seu amigo Greg, o americano tranquilo que tantas vezes lhe telefonava para falar do Museu Hebraico e ajudar nas negociações com o Getty Center ou o Lincoln Center, estava tão interessado em cultura quanto ele, Tomás, se interessava por baseball ou pelos filmes de Arnold Schwarznegger. Ou seja, nada.
Greg não era um homem de cultura; era um agente da CIA que operava em Lisboa sob a capa de adido cultural. Esta súbita tomada de consciência fê-lo olhar para o americano com outros olhos, mas fê-lo sobretudo perceber quão traiçoeiras são as aparências, quão fácil é enganar um ingênuo bem-intencionado como ele próprio.
Apercebendo-se de que fitava o "adido cultural" com ar embasbacado, o português estremeceu, como se acabasse de despertar, e voltou-se de novo para Don.
"O Greg falou consigo, é?"
"Não", negou Don. "O Greg falou com o meu subdiretor do Directorate of Operations. O meu subdiretor falou com o meu chefe, o responsável pelo gabinete de análise de contraterrorismo, e o meu chefe mandou-me vir aqui a Lisboa."
Tomás esboçou uma careta, intrigado.
"Muito bem", disse, balançando a cabeça como um professor a aprovar o trabalho de um aluno aplicado. "E agora diga-me uma coisa, Don. O que estou eu aqui a fazer?"
O americano de cabelos pretos sorriu.
"Não faço a mínima ideia. Fui instruído para lhe explicar os parâmetros da minha missão e foi isso o que acabei de fazer."
O português voltou-se para o "adido cultural".
"Greg, o que tenho eu a ver com isto?"
Sullivan consultou o relógio.
"Acho que não me cabe a mim responder", disse.
"Então cabe a quem?"
"Uh...", hesitou. "Ele deve estar a chegar."
33
"Ele, quem?"
"Já o vai conhecer."
IV
O vulto emergiu de uma porta lateral, na sombra, e aproximou-se devagar da mesa de mogno. Tomás e os dois americanos quase se assustaram quando o viram aparecer do nada, como se fosse um espectro, uma figura fantasmagórica que inesperadamente se materializara na sala.
Era um homem alto e bem constituído, de olhar azul glacial, luminoso, tinha o cabelo grisalho cortado à militar e vestia um terno cinzento-escuro; aparentava uns setenta anos, mas permanecia corpulento, um rochedo tão vivido quanto aquelas rugas que lhe saíam dos cantos dos olhos, traços que lhe riscavam de idade o rosto duro e impenetrável. O desconhecido demorou-se na penumbra, sempre imóvel, sinistro até, os olhos azuis contraídos, como se analisasse a situação, como se estudasse Tomás. Deteve-se um instante mais, até puxar enfim a cadeira, inclinar-se para a frente e assumir o seu lugar na mesa de mogno, os olhos frios cintilantes cravados no português.
"Good afternoon, mister Bellamy", cumprimentou Sullivan com um tom de respeito que não passou despercebido a Tomás.
"Hello Greg", disse o homem, a voz baixa e rouca, sem desviar os olhos de Tomás.
Todo o seu corpo transmitia poder. Poder e ameaça e agressão latente. "Não me vais apresentar o teu amigo?"
Sullivan obedeceu de pronto.
"Tomás, este é mister Bellamy."
"Como está?"
"Hello Tomás", cumprimentou o recém-chegado, pronunciando o nome de Tomás com um sotaque surpreendentemente correto. "Obrigado por ter vindo."
Sullivan inclinou-se sobre o ouvido do português.
"Foi mister Bellamy que chegou esta manhã a Lisboa", apressou-se a acrescentar, num sussurro respeitoso. "Ele veio de propósito de Langley para..."
"Obrigado, Greg", atalhou Bellamy. "O show é agora meu."
"Yes, mister Bellamy."
O americano do olhar sinistro permaneceu um longo momento com a cadeira puxada para trás, na penumbra da sala, sempre com a atenção presa em Tomás.
Tinha uma respiração profunda, quase arfante naquele silêncio pesado; impunha uma presença que suscitava desconforto, temor até. O historiador sentiu gotas de suor brotarem-lhe do topo da testa e tentou sorrir, mas o recém-chegado manteve o rosto fechado, de uma frieza polar, cruel, os olhos contraídos a estudarem o português, a tirarem-lhe as medidas, a avaliarem o homem que tinha diante de si.
Ao fim de alguns minutos, que pareceram uma infinidade a todos os que se encontravam na sala, o desconhecido dos olhos azuis gelados puxou a cadeira para a frente, saindo da penumbra e submetendo-se à luz, apoiou os cotovelos sobre a mesa e revolveu os lábios finos.
34
"O meu nome é Frank Bellamy e sou o responsável por uma das quatro direções da CIA. Ali o Don é analista do Directorate of Operations. Eu sou o chefe do Directorate of Science and Technology. O nosso trabalho no DS&T é pesquisar, conceber e instalar tecnologias inovadoras de apoio às missões de recolha de informação. Temos satélites que são capazes de ver uma matrícula no Afeganistão como se estivéssemos a meio metro de distância. Temos sistemas de intercepção de mensagens que nos permitem, por exemplo, ler os e-mails que o senhor enviou esta manhã para o Museu Egípcio no Cairo ou verificar os sites pornográficos que ali o Don consultou ontem à noite no seu quarto de hotel." O rosto pálido de Don Snyder enrubesceu de vergonha, ao ponto de o jovem analista americano se ver forçado a baixar a cabeça. "Em suma, não há uma rã neste planeta que seja capaz de dar um peido sem que nós saibamos, se assim o quisermos." Deixou os seus olhos hipnóticos penetrarem em Tomás. "Percebeu o nosso poder?"
O português balançou afirmativamente a cabeça, impressionado com aquela apresentação.
"Sim."
Frank Bellamy recostou-se na sua cadeira.
"Good." Olhou pela janela para a relva fresca que resplandecia no jardim.
"Quando a Segunda Guerra Mundial começou, eu era um jovem e promissor estudante de física na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque. Quando ela terminou, eu estava a trabalhar em Los Alamos, uma terríola perdida no topo de uma colina árida do Novo México." Bellamy falava devagar, pronunciando muito bem as palavras e respeitando pausas compridas. "O nome Projecto Manhattan diz-lhe alguma coisa?"
"Não foi aí que fizeram a primeira bomba atômica?"
Os lábios finos do americano reviraram-se no que de mais parecido com um sorriso ele era capaz de esboçar.
"Você é um fucking gênio", exclamou, com uma ponta de sarcasmo. Ergueu três dedos.
"Fizemos três bombas em 1945. A primeira foi um engenho experimental que explodiu em Alamogordo. Seguiram-se Little Boy, lançada sobre Hiroxima, e Fat Man, atirada sobre Nagasáqui." Abriu as mãos. "Bang, a guerra acabou." Congelou um instante, como que a reviver acontecimentos passados. "Um ano depois, o Projeto Manhattan foi dissolvido. Muitos cientistas continuaram a trabalhar em projetos secretos, mas eu não. Vi-me, de repente, sem emprego. Até que um cientista meu amigo me chamou a atenção para o National Security Act, assinado em 1947 pelo presidente Truman a criar uma agência de informações. A anterior agência, a OSS, tinha sido extinta no final da guerra, mas os receios da expansão do comunismo e as atividades do KGB levaram a América a tomar consciência de que não podia permanecer de braços cruzados. A nova agência chamava-se CIA e eu fui recrutado para a área científica." Voltou a curvar os lábios finos, no que parecia ser uma tentativa de sorriso. "O senhor tem diante de si, portanto, um dos fundadores da agência." O rosto readquiriu o semblante frio anterior. "Poderá agora parecer que a área da ciência seria das menores preocupações da CIA naquela época, mas era exatamente o contrário. A América vivia com o pavor de que a União Soviética desenvolvesse armas atômicas e a CIA empenhou-se nessa questão de três formas."