"O quê? O que encontrou?"
"Encontrei inteligência na concepção do universo. Isso é inegável. O universo está concebido com inteligência. Às vezes descobrimos uma coisa curiosa na matemática, uma qualquer brincadeira que, à primeira vista, parece absolutamente irrelevante.
Mais tarde acabamos por constatar que aquela curiosidade numérica desempenha afinal um fundamental papel na estruturação de alguma coisa feita pela natureza."
"Estou a ver."
"O que é mais estranho na natureza é que tudo está ligado. Percebes? Mesmo coisas que parecem absolutamente díspares, sem relação umas com as outras...
mesmo essas coisas estão ligadas. Quando raciocinamos, alguns electrões deslocam-se no nosso cérebro. Pois essa alteração ínfima acaba por influenciar, mesmo que minusculamente, a história de todo o universo." Fez um olhar sonhador. "Interrogo-me se nós não somos Deus."
"Como assim? Não percebo..."
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"Ouve, Tomás. Deus é tudo. Quando olhas para algo da natureza, estás a ver uma faceta de Deus. Ora, como nós fazemos parte da natureza, nós somos também Deus. Entendes?"
"Estou a ver."
"É como se Deus fosse o nosso corpo e nós fôssemos os neurônios desse corpo."
Falava pausadamente, como se cada palavra fosse a última, mas atrás dela vinha outra e outra ainda, o velho matemático descobria forças onde já não as parecia ter.
"Imagina os nossos neurônios. Com toda a certeza, cada neurônio não sabe que faz parte da fatia pensante e consciente do meu corpo, pois não? Cada um acha que está separado de mim, que não faz parte de mim, que tem a sua individualidade. E, no entanto, a minha consciência é a soma de todas essas individualidades, as quais, aliás, não são individualidades nenhumas, são antes partes de um todo. Quer dizer, uma célula do meu braço não pensa, é como uma pedra na natureza, não tem consciência. Mas os neurônios no cérebro pensam. Eles, se calhar, encaram-me a mim como se fosse Deus e não se apercebem de que eu sou eles em conjunto. Da mesma maneira, nós, os seres humanos, talvez sejamos os neurônios de Deus e não nos apercebemos disso. Achamos que somos individuais, separados do resto, quando afinal fazemos parte de tudo." Sorriu. "Einstein acreditava que Deus é tudo o que vemos e ainda tudo o que não vemos."
"Como sabe isso?"
"O quê? Que Deus é tudo?"
"Não. Como sabe o que Einstein pensava?"
"Oh, era o Augusto que me contava."
"O professor Siza?"
"Sim, o Augusto." Fez um ar cansado. "Coitado, o que será feito dele?"
Tomás quase lhe revelou o destino do amigo, mas conteve-se a tempo; aquela não era a altura para fazer uma revelação tão chocante. Preferiu antes deixar o pai discorrer sobre o que lhe ia na alma.
"Vocês davam-se muito bem, não é?"
"Quem? Eu e o Augusto?"
"Sim."
"Oh, sim. Falávamos muito. O Augusto acreditava na existência de Deus. Eu fazia o papel do cético, o que era sempre do contra."
"O que lhe dizia ele?"
"Citava muito o seu mestre. Dizia que Einstein isto e Einstein aquilo. O homem era um herói para ele." Voltou a sorrir. "Guardou tudo o que Einstein lhe deu, sabias?"
"Ah é?"
"Tudo." Esboçou um esgar nostálgico. "Quando o Augusto desapareceu, o colaborador dele apareceu-me lá em casa, muito nervoso, e entregou-me um envelope lacrado que era do Augusto. Acho que já te contei isso."
"Sim."
"O rapaz vinha muito nervoso. Dizia que quem quer que fosse que tivesse raptado o Augusto poderia voltar e que ele próprio não se encontrava em segurança. Enfim, via-se que estava em pânico, não é?"
"Calculo."
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"O moço andava a distribuir pelos outros professores as coisas do Augusto, para dificultar a tarefa dos supostos sequestradores. Claro que aquilo era um imenso disparate, é evidente que não lhe iria acontecer nada de mal, mas quem é que convencia o rapaz do contrário? O tipo estava totalmente em pânico. De maneira que lá lhe fiquei com o envelope."
"Fez bem."
"Agora vais-te rir. Curioso como sou, deslacrei o envelope e fui ver o que estava lá dentro. Sabes o que era?"
"Não."
"Umas relíquias que o Augusto guardou dos seus tempos de Princeton."
"Ah, sim?"
"Pois. Era uma pequena folha rabiscada por Einstein."
"A sério?"
"É verdade. Umas coisas sem sentido, claro. A folha tinha três alfabetos colocados uns em cima dos outros e, no topo, o nome de Einstein em italiano. Pois, olha, o Augusto até isso tinha guardado, vê lá tu."
"O nome de Einstein em italiano? Não estou a perceber..."
"É verdade, tinha o nome dele em italiano."
"Mas como é o nome de Einstein em italiano? Einsteinini?"
O pai riu-se com fraqueza.
"Não, palerma", disse. "Alberti."
"Como?"
"O primeiro nome de Einstein era Albert, não era? Pois ele escreveu Alberti."
Tomás remexeu-se na cadeira, subitamente afogueado, a excitação a rebentar-lhe no peito.
"Alberti? Tem a certeza de que é isso o que estava lá escrito?"
"Sim, claro. Porquê?"
"Ouça, pai", disse Tomás, inclinando-se sobre o paciente. "Onde está guardado esse envelope?"
"Na primeira gaveta da minha secretária, lá em casa. Porquê?"
O filho fez um esforço para conter a excitação que o assomou. Respirou fundo, controlou a vontade de ir a correr para casa e recostou-se na cadeira.
"Por nada, pai. Por nada."
Manuel olhou para ele com ar desconfiado, estranhando a inesperada alteração do seu estado de espírito.
"Passa-se alguma coisa? Eu disse alguma coisa de extraordinário?"
"Não, não. Está tudo bem."
O pai sentia-se demasiado cansado para insistir. Respirou fundo e olhou de relance para a porta.
"A tua mãe?"
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"Já vem a caminho. Deve estar a chegar."
"Trata bem dela, ouviste?"
"Sim, claro. Fique descansado."
"Se um dia tiveres de a pôr num lar, escolhe um lar muito bom."
"Oh, pai. Que raio de conversa..."
"Deixa-me falar."
"Sim."
"Trata sempre bem da tua mãe." Tossiu. "Ajuda-a a viver com dignidade o tempo que lhe resta."
"Não se preocupe."
Manuel parou para recuperar o fôlego. Por instantes só se escutou o seu arfar pesado.
"Há uma certa paz na idéia da morte", sussurrou. "Mas, para nos entregarmos a ela, temos de fazer as pazes com a vida. Percebes? Temos de perdoar aos outros. Para o conseguirmos, porém, precisamos primeiro de nos perdoarmos a nós próprios.
Perdoa-te a ti mesmo e depois perdoa aos outros." Mais uma pausa para respirar.
"Temos medo da morte porque achamos que não fazemos parte da natureza, que uma coisa somos nós e outra é o universo. Mas tudo na natureza morre. De certo modo, nós somos um universo, e, por isso, nós também morremos." Procurou com a mão a mão do filho e enlaçaram os dedos. "Vou-te contar um segredo. Queres ouvir?"
"Sim."
"O universo é cíclico."
"Como?"
"O Augusto contou-me que os hindus acreditam que tudo no universo é cíclico, até o próprio universo. O universo nasce, vive, morre, entra na não-existência e volta a nascer, num ciclo infinito, num eterno retorno. Tudo é cíclico. Chamam-lhe o dia e a noite de Urahman.' Arregalou os olhos.
"Sabes que mais?"
"Diga."
O pai sorriu.
"Os hindus têm razão."
Sentiram a porta abrir-se e Tomás viu a mãe entrar. Dona Graça vinha com um sorriso confiante, como se aquela fosse mais uma visita, um novo encontro com o marido em convalescença; mas o filho sabia que era tudo fachada, que por detrás daquele sorriso se escondiam as lágrimas, que por detrás daquela confiança se ocultava o absoluto desespero.