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Tomás tomou naquele instante consciência de que este era o derradeiro encontro dos pais, o momento em que se iriam amar pela última vez, restavam-lhes poucos instantes para dizerem adeus e seguirem caminhos diferentes. Não há separação mais dolorosa do que aquela que é para sempre. Sem conseguir mais reter a vaga de emoções que o afogava pela garganta, caiu sobre o pai e agarrou-o com força, abraçou-o e beijou-o com saudade, abriu enfim as comportas do rio de lágrimas que lhe 341

transbordava pelos olhos e deixou soltar-se a comoção de quem sabe que aquela é a despedida.

Até à eternidade.

XLIII

O ribombar longínquo dos trovões anunciava a lenta aproximação da chuva.

Tomás olhou para o céu e contemplou os estratos densos que se amontoavam a baixa altitude, sombrios na base, luminosos no topo; mas tão vastos que pareciam uma cobertura, um enorme e opaco teto que deslizava rente ao solo e por toda a região lançava uma penumbra triste, triste e cinzenta.

O céu preparava-se para chorar.

"Pater noster, qui es in caelis,

Sanctificetur nomen tuum,

Adveniat regnum tuum,

Fiat voluntas tua

Sicut in caelo et in terra."

Os ciprestes, altos e esguios, abanavam ao vento e Tomás estreitou a mãe junto a si quando ouviu o padre, terminada a homilia final, fazer o sinal-da-cruz e entoar o pai-nosso em latim, a voz cavada, profunda. Dona Graça chorava baixo, um lenço rendilhado colado ao nariz, e o filho teve o cuidado de a manter colada ao seu corpo, como se assim lhe dissesse que ficasse descansada, que nada temesse, que ele a protegeria.

O caixão do pai, a madeira de nogueira envernizada brilhando à luz tênue da manhã, encontrava-se pousado sobre a terra úmida, junto à cova aberta no chão, e uma pequena multidão de familiares, amigos, conhecidos ou simples alunos e ex-alunos aglomerava-se em redor, numa formação compacta, escutando em silêncio as palavras solenes entoadas pelo capelão da universidade no cemitério da Conchada.

"Panem nostrum super sub stantialem da nobis hodie; Et dimitte nobis debita nostra,

Sicut et nos dimíttimus debitóribus nostris;

Et ne inducas nos in tentationem,

Sed libera nos a malo.

Amen."

Um murmúrio ergueu-se na multidão, confirmando aquele amen final, e o padre benzeu o caixão. Os coveiros colocaram-se em posição, ergueram o féretro e desceram-no devagar para a cova. O pranto da mãe tornou-se mais convulsivo e o próprio Tomás 342

teve dificuldade em controlar as emoções. Viu o pai ser engolido por aquele terrível buraco escuro e nesse instante foi assaltado pela imagem do homem sábio, reservado, fechado no seu escritório a resolver os enigmas do universo, tão grande em vida e agora tão reduzido a nada.

A nada.

Sempre lhe disseram que um homem só se torna homem quando o pai morre; mas Tomás não se sentia mais homem porque o pai ia a enterrar. Ao ver as primeiras pazadas de terra tombar sobre o esquife sentiu-se pequeno, uma criança perdida num mundo hostil, abandonada pelo seu protetor, desamparada do aconchego do homem que sempre olhara como quem olha para uma montanha.

Filas de pessoas vieram apertar-lhe a mão. Vinham trajadas de escuro, o olhar pesado, despenteadas pelo vento agreste, soltando palavras de circunstância, dizendo coisas ponderadas, encorajando-o a ter coragem. Conhecia alguns rostos, eram primos e tios que vieram de longe, ou colegas do pai na universidade; mas a maioria não, tratava-se de gente que nunca vira antes e que viera simplesmente para se despedir do velho professor de matemática.

A saída do cemitério viu a longa limusina negra com a matrícula diplomática estacionada no passeio. Procurou em redor e deparou com homens de escuro, de ridículos óculos de sol naquele dia sombrio, aglomerados em torno de um banco de jardim, de aspecto folgado. Os homens viram-no e endireitaram-se, talvez por respeito, talvez porque se preparassem para algo. Uma figura vestida de azul, de corpo esguio e olhar hipnotizante, destacou-se de entre eles e foi para essa figura de fêmea que a atenção de Tomás se desviou, atraído para aqueles olhos melífluos com a mesma força que um metal é atraído para um íman.

Ariana.

Aproximaram-se devagar e abraçaram-se com força. Tomás acariciou-lhe o cabelo negro, afagou-lhe a pele delicada, beijou-lhe a bochecha fofa e os lábios úmidos, sentiu-lhe as lágrimas quentes colarem-se-lhe ao rosto. Ouviu-a gemer e suspirar, estreitou-a para si e aqueceu-se no calor do seu corpo trêmulo, o volume dos seios comprimiu-se-lhe no peito, as mãos afagaram-lhe as costas e os dedos mergulharam-lhe pelo cabelo.

"Tive saudades tuas", murmurou ele.

"E eu tuas", retorquiu ela, a voz num sopro. "Muitas."

"Estás bem?"

"Sim, estou bem, estou bem."

"Trataram-te bem?"

"Sim." Ela afastou o rosto e olhou-o, apreensiva. "E tu? Como te sentes?"

"Estou bem, não te preocupes."

Tomás sentiu vultos moverem-se em redor, mas não se importou. Naquele instante apenas lhe interessava Ariana, a Ariana que ele finalmente estreitava entre os braços, a Ariana com quem partilhava lágrimas de sal e beijos de chocolate, a Ariana que lhe tremia nos braços, que estremecia de saudade e de emoção.

"Hi, Tomás", disse uma voz familiar. "Desculpe interromper o reencontro."

Era Greg.

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"Olá."

"Lamento a morte do seu pai... enfim, as circunstâncias não são fáceis, mas temos um trabalho a fazer, não é?"

Tomás desprendeu-se de Ariana, mas não estendeu a mão ao americano; achava que nada tinha para lhe agradecer nem nada o obrigava a ser delicado depois de tudo o que se passara.

"Sim."

"Como deve calcular, eu corri um grande risco em cancelar o vôo da CIA para Islamabad. Quando você me telefonou com a notícia, já íamos para o aeroporto e tive algum trabalho em convencer Langley de que, se você realmente tinha cumprido a sua parte do negócio, só nos restava cumprir a nossa."

"Do que está você à espera agora?", perguntou Tomás com secura. "Que eu lhe agradeça?"

"Não, não estou à espera de tal coisa", disse Greg, mantendo o ar profissional.

"Estou à espera que você me mostre qual a mensagem que Einstein escondeu no manuscrito. O próprio mister Bellamy já me ligou duas vezes para saber a resposta."

As primeiras bátegas começaram a cair; primeiro tímidas, depois insistentes.

Tomás olhou em redor, como se procurasse algo. Encontravam-se perto do portão do cemitério e mantinha-se ali ainda muita gente que viera do funeral, a maior parte a abrir com fragor os guarda-chuvas negros e a dispersar-se apressadamente pelo passeio.

"Ouça, não haverá por aqui um lugar discreto onde nos possamos sentar?"

O americano apontou para o enorme Cadillac da sua embaixada, estacionado alguns metros adiante.

"Vamos para ali."

A limusine era espaçosa, com bancos a toda a largura do interior e o centro ocupado por uma pequena mesinha. Tomás e Ariana sentaram-se lado a lado, as costas voltadas para a longa janela lateral por onde as gotas deslizavam como lágrimas perdidas, deixando no vidro um rasto serpenteado. Greg ajeitou-se junto a eles e fechou a porta. Lá fora ficaram os restantes americanos, presumivelmente todos eles seguranças, entregues às bátegas gordas que jorravam do céu em fúria.