"Aceitou decifrar o documento?"
"Uh... sim, sim. Eles pagam bem."
"Pagam quanto?"
"Cem mil euros por mês."
"Isso é uma merda."
"É mais do que eu ganho num ano a trabalhar na faculdade."
"Nós damos-lhe esse dinheiro e você trabalha para nós."
Tomás olhou-o, confuso.
"Trabalho para quem?"
"Para nós. A CIA."
"Para fazer o quê?"
"Para ir a Teerã ver esse documento."
"Só isso?"
"E mais umas coisinhas que depois lhe explicaremos."
"Que coisinhas?"
"Depois lhe explicaremos."
O português sorriu e abanou a cabeça.
"Não, isso não funciona assim", disse. "Eu não sou o James Bond, sou um historiador perito em criptanálise e línguas antigas. Não vou fazer coisas para a CIA."
"Vai, sim."
"Não, não vou."
Frank Bellamy debruçou-se sobre a mesa, os olhos cruéis cravados em Tomás como adagas, os lábios contorcendo-se de fúria congelada, a voz rouca carregada de entoações ameaçadoras, de insinuações sinistras.
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"Meu caro professor Tomás Noronha, deixe-me pôr as coisas deste modo", rosnou baixinho. "Se não aceitar a proposta que lhe estou a fazer, o senhor vai ter a vida muito dificultada." Ergueu uma sobrancelha. "Aliás, arrisca-se mesmo a não ter vida, se é que me faço entender." Os cantos da boca dobraram-se no seu habitual esboço de sorriso. "Mas, se aceitar, irão acontecer quatro coisas. A primeira é que vai ganhar os seus míseros duzentos mil euros por mês, cem mil pagos por nós e os outros cem mil pelos iranianos. A segunda é que talvez ajude a encontrar o pobre desgraçado do professor Siza, coitado, cuja filha anda muito chorosa porque não sabe por onde pára o paizinho querido. A terceira é que talvez consiga salvar o mundo do pesadelo das armas nucleares nas mãos dos terroristas. E a quarta, possivelmente a mais importante para si, é que, sim, haverá um futuro na sua vida." Voltou a recostar-se na cadeira. "Entendeu?"
O historiador devolveu-lhe o olhar. Sentia-se furioso por ter sido assim ameaçado e mais furioso ainda porque não tinha escapatória, aquele homem diante de si dispunha de imenso poder e vontade suficiente para o usar como lhe conviesse.
"Entendeu?", perguntou Bellamy novamente.
Tomás acenou devagar com a cabeça.
"Sim."
"Você é um fucking gênio."
"Fuck you", devolveu o português de imediato.
O americano riu-se pela primeira vez. O corpo contraiu-se-lhe com as gargalhadas, parecia soluçar, e só se acalmou um minuto depois, quando o riso se transformou numa tosse persistente. Controlou a tosse e, após uma pausa para retomar a respiração normal, já com o rosto regressado ao seu semblante habitual, embora a face se mantivesse congestionada, mirou Tomás.
"Você tem big balls, professor. Gosto disso." Fez um gesto com a mão na direção de Sullivan e Snyder, que tudo observavam num silêncio sepulcral. "Não há muita gente que se vire para mim e me diga fuck you. Nem o presidente." Apontou o dedo a Tomás e rugiu, subitamente ameaçador. "Não se atreva a voltar a fazê-lo, ouviu?"
"Hmm."
"Ouviu?"
"Sim, já percebi."
O americano coçou a testa.
"Muito bem", suspirou, sempre muito controlado. "Há pouco não acabei de lhe contar a história da encomenda feita por Ben Gurion a Einstein. Quer ouvir o resto?"
"Se faz questão nisso..."
"Einstein começou a conceber a nova bomba atômica no mês seguinte ao encontro com Ben Gurion. Mantenha presente que a idéia era desenhar uma bomba que Israel pudesse depois fabricar rapidamente, com meios escassos e às escondidas.
Sabemos hoje que Einstein trabalhou neste projeto durante pelo menos três anos, até 1954, e é possível que ainda trabalhasse no documento em 1955, quando morreu.
Sabe-se pouco sobre o que o nosso geniozinho fez. Um cientista que com ele trabalhou, e que nos dava informações regulares, revelou que Einstein lhe dissera ter em mãos a fórmula da maior explosão jamais vista, uma coisa tão grande que, segundo o nosso informador, Einstein se mostrava... uh... siderado com o que tinha descoberto." Adotou o ar de quem faz um esforço de memória, como se tivesse sido 44
assaltado por uma dúvida. "Sim, é isso", disse enfim. "Siderado. Essa foi a expressão que o nosso informador usou. Siderado."
"E não sabem onde pára esse documento?"
"O documento desapareceu e Einstein levou o segredo para a cova. Mas é possível que ele o tenha confiado a alguém. Diz-se que Einstein se tornou amigo de um jovem físico que foi estagiar para o Institute for Advanced Study e que foi com esse jovem físico que..."
"O professor Siza!"
"Você é um fucking gênio, não há dúvida", confirmou Bellamy. "O professor Siza, nem mais. O mesmo que desapareceu há três semanas. O mesmo que tem um apartamento onde foram encontrados cabelos de Aziz al-Mutaqi, o perigoso operacional do Hezbollah. O mesmo Hezbollah que é o movimento terrorista financiado pelo Irã. O mesmo Irã que está a tentar por todos os meios desenvolver armas nucleares às escondidas."
"Meu Deus."
"Está a entender agora por que motivo queríamos tanto conversar consigo?"
"Sim."
"Falta dizer-lhe uma coisa que nos foi revelada pelo nosso informador,"
"Qual informador?"
"O amigo de Einstein, o homem a quem o nosso geniozinho falou sobre o projeto que Ben Gurion lhe encomendou."
"Ah, sim."
"O nosso informador disse-nos que Einstein tinha até um nome de código para o seu projeto."
Tomás sentiu o coração disparar.
"Que nome?"
Frank Bellamy respirou fundo.
"Die Gottesformel. A fórmula de Deus."
V
O casario pitoresco, de paredes brancas e telhados cor de tijolo, amontoava-se do outro lado do Mondego, erguendo-se por entre as copas dos plátanos, abraçado por uma muralha velha. Os largos e altivos edifícios da universidade coroavam a cidade, a bela torre sineira elevando-se acima de tudo, parecia um farol cravado no topo de um promontório, o ponto de referência para onde todos se voltavam.
O sol mimava Coimbra.
O carro passou pelo Parque do Choupalinho, o plácido lençol do rio a refletir o velho burgo na margem esquerda como um espelho. Agarrado ao volante, Tomás contemplou a urbe na outra banda e não pôde deixar de pensar que, se havia sítio onde se sentia bem, era ali, em Coimbra. Misturava-se naquelas ruas o velho com o novo, a tradição com a inovação, o fado com o rock, o romantismo com o cubismo, a fé 45
com o conhecimento. Nas artérias arejadas e por entre casas cheias de luz circulava uma importante comunidade estudantil, rapazes e raparigas de livros debaixo dos braços e a ilusão do futuro a bailar-lhes nos olhos, eternos clientes da principal indústria da cidade, a universidade.
Tomás cruzou o Mondego pela Ponte de Santa Clara e entrou no Largo da Portagem, que contornou até meter pela esquerda. Estacionou num espaço parqueado da marginal, junto à estação, e palmilhou o emaranhado labiríntico da Baixinha até chegar à Rua Ferreira Borges, a grande artéria animada por inúmeras lojas, cafés, pastelarias e boutiques, acabando por desembocar na pitoresca Praça do Comércio.
Meteu por um estreito arruamento lateral e entrou num edifício de três andares, servido por um velho elevador com porta gradeada e cheiro a bafio. Carregou no botão e, após uma curta viagem aos solavancos, saiu no segundo andar.
"Tomás", disse a mãe à porta, abrindo-lhe os braços. "Ainda bem que chegaste.