Credo, já estava em cuidados."
Abraçaram-se.
"Ah, sim? Porquê?"
"Ora, porquê! Por causa da estrada, por que haveria de ser?"
"O que tem a estrada?"
"São esses malucos todos, filho. Tu não ouves as notícias? Ainda ontem ocorreu um acidente horrível na auto-estrada, ali perto de Santarém. Veio um maluco desembestado a toda a velocidade e bateu num carro que seguia tranquilamente na sua vida. Ia lá dentro uma família e morreu-lhes o bebê, coitadinho."
"Oh, mãe, se eu tivesse medo de tudo nem sequer saía de casa."
"Ah, mas mesmo estar em casa é perigoso, sabias?"
Tomás riu-se.
"Estar em casa é perigoso? Desde quando?"
"Foi o que eu vi nas notícias. Dizem as estatísticas que é em casa que ocorre a maior parte dos acidentes, fica sabendo."
"Pudera! É em casa que as pessoas passam a maior parte do tempo..."
"Ai, só te digo, filhinho", bufou a mãe, juntando as mãos como numa prece. "Viver está pela hora da morte. Pela hora da morte!"
Tomás tirou o casaco e pendurou-o no bengaleiro.
"Pois, está bem", disse, querendo arrumar ali a conversa. "O pai?"
"Está a descansar, coitadinho. Acordou com dores de cabeça e tomou uma coisa muito forte, de maneira que só daqui a uma ou duas horas é que vai acordar." Fez um gesto em direção à cozinha. "Entra, entra. Estou a preparar o almoço."
Tomás sentou-se na copa, cansado da viagem.
"Como é que ele tem passado?"
"O teu pai?" Abanou a cabeça. "Nada bem, o pobrezito. Tem dores, sente-se fraco, anda deprimido..."
"Mas a radioterapia vai resultar, não vai?"
Graça fixou os olhos no filho.
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"Apesar da depressão, ele tem esperança nisso, não é?" Suspirou. "Mas o doutor Gouveia disse-me que a radioterapia está apenas a atrasar o processo, mais nada."
Tomás baixou os olhos.
"Acha que ele vai mesmo morrer?"
A mãe susteve a respiração, ponderando o que deveria ou conseguiria responder.
"Vai", acabou ela por dizer num sussurro. "Eu vou-lhe dizendo que não, que é preciso lutar, que há sempre solução. Mas o doutor Gouveia já me disse para não ter ilusões e aproveitar bem o tempo que resta."
"E ele sabe disso?"
"Quer dizer, o teu pai não é parvo, pois não? Sabe que tem uma doença muito grave e esse fato não lhe foi escondido. Mas procuramos sempre manter viva a esperança."
"Como é que ele está a reagir?"
"Tem dias. Primeiro, achou que era tudo um grande engano, que tinham trocado as análises, que..."
"Sim, ele contou."
"Bem, depois lá aceitou. Mas as suas reações variam de dia para dia, às vezes quase de hora para hora até. Numas alturas fica muito deprimido, diz que vai morrer e que não quer morrer. É quando o consolo mais. Mas depois tem momentos em que fala como se tivesse apenas uma gripe, quase contradizendo tudo o que disse uma hora antes. É capaz de fazer projetos sobre viagens... uh... sei lá, fala em ir ao Brasil, ou planeja um safari em Moçambique, coisas assim. O doutor Gouveia diz que se deve deixá-lo sonhar acordado, isso faz-lhe bem, ajuda-o a sair da depressão. E eu, para falar com franqueza, também acho."
Tomás fez um estalido contrariado com a língua.
"Que chatice, isto."
Graça suspirou de novo.
"Ah, é horrível." Abanou a cabeça, como que a sacudir maus pensamentos. "Mas chega de tristezas." Decidiu mudar de assunto. Girou a cabeça, procurando a mala do filho, e não encontrou nada. "Olha lá, tu não dormes cá?"
"Não, mãe. Preciso de voltar esta noite para Lisboa."
"Já? Mas porquê?"
"Tenho um vôo amanhã de manhã."
A senhora pôs as mãos na cara.
"Ai, minha nossa! Um vôo! Vais andar de avião outra vez?"
"Vou, pois. É o meu trabalho."
"Ai, Virgem Santíssima! Já estou arreliada. Sempre que viajas fico toda nervosa, pareço uma galinha diante do cutelo."
"Não fique, não é caso para isso."
"E onde vais tu, Tomás?"
"Vou apanhar um vôo para Frankfurt e fazer a ligação até Teerã."
"Teerã? Mas isso não é na Arábia?"
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"É no Irã."
"No Irã? Mas o que vais tu fazer naquela terra de malucos, Santo Deus? Não sabes que eles são uns fanáticos e odeiam estrangeiros?"
"Que exagero!"
"A sério! Ainda noutro dia vi nas notícias. Esses árabes passam a vida a queimar bandeiras americanas e a..."
"Não são árabes, são iranianos."
"Ora! São árabes, como os iraquianos e os argelinos."
"Não, não são. São muçulmanos, mas não são árabes. Os árabes são semitas, os iranianos são arianos."
"Mais razão me estás a dar! Se são arianos, são nazis!"
Tomás esboçou uma careta desesperada.
"Que confusão!", exclamou. "Não é nada disso! Diz-se arianos quando nos referimos aos povos indo-europeus, como os indianos, os turcos, os iranianos e os europeus. Já os árabes são semitas, tal como os judeus."
"Não interessa. Árabes ou nazis, aquilo é tudo a mesma gente, passam o dia de joelhos virados para Meca ou a fazer explodir bombas por toda a parte."
"Que exagero!"
"Que exagero, não. Eu sei do que estou a falar."
"Mas já lá foi alguma vez, para dizer isso assim com tanta autoridade?"
"Não preciso. Eu sei muito bem o que vai por aquelas terras."
"Ah, sim? E como sabe isso?"
A mãe parou diante da cozinha, fitou-o nos olhos e pôs as mãos na cintura.
"Ora, vi nas notícias."
O arroz-doce já ia no fim quando Tomás ouviu o pai a tossir. Instantes mais tarde, a porta do quarto abriu-se e Manuel Noronha, de roupão e aspecto desgrenhado, espreitou para a copa.
"Olá, Tomás. Estás bom?"
O filho levantou-se.
"Olá, pai. Como vai isso?"
O velho professor de matemática fez uma careta indecisa.
"Mais ou menos."
Sentou-se na mesa da copa e a mulher, que arrumava a louça, olhou-o afetuosamente.
"Queres comer alguma coisa, Manel?"
"Só uma sopinha."
Graça encheu um prato de sopa quente e colocou-o diante do marido.
"Ora aqui está. Mais alguma coisa?"
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"Não, isto chega", disse Manuel, abrindo a gaveta dos talheres para tirar uma colher. "Não tenho muita fome."
"Bem, se quiseres, há um bifinho no frigorífico. É só fritar." Saiu da cozinha e vestiu um casaco. "Vou aproveitar para dar ali um saltinho à Igreja de São Bartolomeu. Portem-se bem, hã?"
"Até já, mãe."
Graça Noronha saiu do apartamento, deixando pai e filho a sós. Tomás não tinha a certeza de gostar da idéia, afinal de contas sempre foi mais próximo da mãe, mulher faladora e carinhosa, do que do pai, um homem calado, circunspecto, que vivia fechado no seu escritório, entregue ao mundo dos números e das equações, alheio à família e a tudo o resto.
Silêncio.
Um mutismo desconfortável assentou no apartamento, apenas rompido pelo tilintar da colher no prato de sopa e pelo ocasional schlurp que Manuel Noronha emitia ao engolir a comida. Tomás fez-lhe algumas perguntas sobre o seu colega desaparecido, Augusto Siza, mas o pai somente conhecia o que já era do domínio público. Apenas revelou que o assunto estava a deixar toda a gente perturbada na faculdade, ao ponto de o colaborador do professor ter durante uns tempos evitado sair de casa, a não ser para pedir um ou outro favor, como solicitar que lhe fossem buscar comida à mercearia ou guardar uma coisa em qualquer sítio.
A conversa sobre o professor Siza depressa se esgotou e o problema é que Tomás não sabia sobre o que deveriam agora falar; na verdade não se lembrava de alguma vez ter tido uma conversa de jeito com o pai. Mas precisava de preencher o silêncio e começou a contar-lhe a visita ao Cairo e os pormenores da estela que foi inspecionar no Museu Egípcio. O pai ouviu-o sem nada dizer, por vezes murmurando apenas o seu assentimento aqui ou ali, mas tornava-se evidente que não seguia as palavras com atenção, a mente divagava algures, talvez no destino que a doença lhe traçava, talvez no horizonte de abstração por onde frequentemente se perdia.