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Voltou o silêncio.

Tomás já não sabia sobre o que tagarelar. Ficou a observar o pai, a sua tez pálida e enrugada, o rosto chupado, o corpo frágil e envelhecido. O pai caminhava a passos largos para a morte e a triste verdade é que, mesmo assim, Tomás não conseguia manter uma conversa com ele.

"Como se sente o pai?"

Manuel Noronha suspendeu a colher no ar e olhou para o filho.

"Tenho medo", disse simplesmente.

Tomás abriu a boca, prestes a perguntar-lhe de que é que tinha medo, mas calou-se a tempo, tão evidente era a resposta. Foi porém nesse instante, no preciso momento em que calou a pergunta que lhe assomara à boca, que percebeu que algo de diferente tinha acontecido com aquela resposta; o pai de algum modo abrira uma janela dentro de si, pela primeira vez dissera-lhe o que sentia sobre alguma coisa. Foi como se, naquele exato segundo, se tivesse processado uma qualquer transformação, como se uma racha se tivesse aberto na muralha que os dividia, como se uma ponte se tivesse erguido sobre um rio intransponível, como se a barreira entre pai e filho se tivesse tornado infinitamente mais pequena. O grande homem, o gênio da matemática que vivia cercado de equações e logaritmos e fórmulas e teoremas, descera à terra e tocara no filho.

"Eu compreendo", limitou-se Tomás a dizer.

49

O pai abanou a cabeça.

"Não, filho. Não compreendes." Meteu finalmente a colher à boca. "Vivemos a vida como se ela fosse eterna, como se a morte fosse algo que só acontece aos outros e apenas nos está reservada ao fim de muito tempo, tanto tempo que nem merece a pena pensarmos nisso. Para nós, a morte não passa de uma abstração. No entretanto, eu preocupo-me com as minhas aulas e as minhas pesquisas, a tua mãe preocupa-se com a igreja e com as pessoas que vê a sofrerem no noticiário ou na novela, tu preocupas-te com o teu salário e com a mulher que já não tens e com papiros e estelas e outras relíquias cheias de irrelevâncias." Olhou, pela janela da cozinha, para os clientes de uma esplanada, lá em baixo, na Praça do Comércio. "Sabes, as pessoas passam pela vida como sonâmbulas, preocupam-se com o que não é importante, querem ter dinheiro e notoriedade, invejam os outros e esmifram-se por coisas que não valem a pena. Levam vidas sem sentido. Limitam-se a dormir, a comer e a inventar problemas que as mantenham ocupadas. Privilegiam o acessório e esquecem o essencial." Abanou a cabeça. "Mas o problema é que a morte não é uma abstração.

Em boa verdade, ela está já aqui ao virar da esquina. Um dia, estamos nós muito bem a deambular pela rua da vida como sonâmbulos, vem um médico e diz-nos: você pode morrer. E é nesse instante, quando de repente o pesadelo se torna insuportável, que finalmente despertamos."

"O pai despertou?"

Manuel levantou-se da mesa, colocou o prato vazio no lavatório e abriu a torneira, passando o prato pela água.

"Sim, despertei", disse. Fechou a torneira e voltou a sentar-se na mesa da copa.

"Despertei para, se calhar, viver os meus derradeiros instantes." Olhou para o lavatório. "Despertei para ver a vida escoar-se como a água que desaparece por aquele ralo." Tossiu. "Às vezes sinto uma raiva muito grande com o que me está a acontecer.

Ponho-me a perguntar a mim mesmo: porquê eu? Com tanta gente que há por aí, tanta gente que não anda cá a fazer nada, por que razão me havia de acontecer isto a mim?" Passou a mão pela cara. "Olha, noutro dia ia a caminho do hospital e cruzei-me com o Chico da Pinga. Lembras-te dele?"

"Quem?"

"O Chico da Pinga."

"Uh... não, acho que não conheço..."

"Conheces, pois. É aquele velho que passa o dia nos copos e que às vezes vemos por aí aos ziguezagues, todo borracho, com umas roupas muito porcas e andrajosas."

"Ah, sim! Já sei quem é, lembro-me de o ver quando era miúdo. Ele ainda é vivo?"

"Vivo? O homem está são que nem um pêro! Anda sempre bêbado como um cacho, não faz nem nunca fez nada na vida, cheira mal, escarra no chão e bate na mulher... enfim, um vadio, um... um inútil! Pois, olha, cruzei-me com ele e pensei: mas por que raio não foi ele a ficar doente? Mas que Deus é este que me dá uma doença tão grave a mim e deixa um mandrião desta categoria à solta, com saúde para dar e vender?" Arregalou os olhos. "Quando penso nisso, até me irrito!"

"O pai não pode ver as coisas assim..."

"Mas é uma injustiça! Eu sei que não posso encarar as coisas deste modo, que chega a ser imoral desejar que o nosso mal se transfira para os outros, mas, enfim, quando me vejo assim neste estado e olho para a saúde que respira um tipo como o Chico da Pinga, desculpa lá mas não consigo deixar de me sentir zangado!"

"Eu percebo."

50

"Por outro lado, tenho consciência de que não devo permitir que este sentimento de revolta tome conta de mim." Tossiu. "Sinto que o meu tempo é agora precioso, percebes? Tenho de o aproveitar para me redirecionar, para rever as minhas prioridades, para dar importância ao que realmente tem importância, para esquecer o que é irrelevante e fazer as pazes comigo e com o mundo." Fez um gesto vago. "Passei demasiado tempo fechado em mim mesmo, ignorando a tua mãe, ignorando-te a ti, ignorando a tua mulher e a tua filha, de costas voltadas para tudo, exceto para a matemática que me apaixona. Agora que sei que posso morrer, sinto que passei pela vida como se estivesse anestesiado, como se dormisse, como se, na realidade, não a tivesse vivido. E isso também me revolta. Como pude ser assim tão estúpido?"

Diminuiu o tom de voz, quase sussurrando. "É por isso que quero usar o pouco tempo que talvez me resta para fazer o que não fiz em tanto tempo. Quero viver a vida, abraçar o que é realmente importante, reconciliar-me com o mundo." Baixou a cabeça e olhou para o peito. "Mas não sei se isto que tenho dentro de mim me vai deixar."

Tomás não sabia o que dizer. Nunca ouvira o pai refletir sobre a vida e sobre a forma como a vivera, sobre os erros que cometera, sobre as pessoas que devia ter amado e das quais se escondera. No fundo, o pai falava-lhe da sua relação consigo, falava-lhe das brincadeiras que nunca tiveram, das histórias que não lhe lera na cama, dos pontapés na bola que não trocaram, de tudo o que não partilharam. Era também a sua relação com o filho que o pai agora indiretamente questionava. Ficou, por isso, sem saber como lhe responder; sentiu apenas um enorme e pungente desejo de ter uma segunda oportunidade, de na próxima vida ser filho daquele pai e de aquele pai ser um verdadeiro pai para o filho. Sim, como seria bom ter uma segunda oportunidade.

"Talvez tenha mais tempo do que pensa", ouviu-se a dizer. "Talvez o nosso corpo morra, mas a alma sobreviva e o pai possa, numa reencarnação, corrigir os erros desta vida. O pai acredita nisso?"

"Em quê? Na reencarnação?"

"Sim. Acredita nisso?"

Manuel Noronha fez um sorriso triste.

"Gostaria de acreditar, claro. Quem é que, estando na minha posição, não gostaria de acreditar em tal coisa? A sobrevivência da alma. A possibilidade de ela reencarnar mais tarde em alguém e eu poder voltar a viver. Que idéia tão bonita."