Abanou a cabeça. "Mas eu sou um homem de ciência e tenho o dever de não me deixar iludir."
"O que quer dizer com isso? Acha que não é possível a alma sobreviver?"
"Mas o que é isso da alma?"
"E... sei lá... é uma força vital, é um espírito que nos anima."
O velho matemático ficou a mirar o filho por um momento.
"Escuta, Tomás", disse. "Olha para mim. O que vês?"
"Uh... vejo o pai."
"Vês um corpo."
"Sim."
"É o meu corpo. Refiro-me a ele como se dissesse: é a minha televisão, é o meu carro, é a minha caneta. Neste caso, é o meu corpo. E algo que é meu, é uma propriedade minha." Encostou a palma da mão ao peito. "Mas se eu digo, o corpo é meu, o que eu estou a dizer é que eu não sou o corpo. O corpo é meu, não sou eu.
51
Então, o que sou eu?" Colou o dedo à testa. "Eu sou os meus pensamentos, a minha experiência, os meus sentimentos. Isso sou eu. Eu sou uma consciência. Mas agora repara. Será que a minha consciência, este eu que sou eu, é a alma?"
"Uh... sim, suponho que sim."
"O problema é que este eu que sou eu é produto de substâncias químicas que me circulam pelo corpo, de transmissões elétricas entre neurônios, de heranças genéticas codificadas no meu ADN, de um sem-número de condicionalismos exteriores e intrínsecos que moldam este eu que sou eu. O meu cérebro é uma complexa máquina eletroquímica que funciona como um computador e a minha consciência, esta noção que eu tenho da minha existência, é uma espécie de programa. Percebes? De uma certa forma, e literalmente, os miolos são o hardware, a consciência o software. O que levanta naturalmente questões interessantes. Será que um computador tem alma? Se o ser humano é um computador muito complexo, será que ele próprio tem alma? Se todo o circuito morrer, a alma sobrevive? Sobrevive onde? Em que sítio?"
"Bem... uh... ergue-se do corpo e vai... uh... vai..."
"Vai para o céu?"
"Não, vai... sei lá, vai para uma outra dimensão."
"Mas de que é feita essa alma que se ergue do corpo? De átomos?"
"Não, acho que não. Deve ser uma substância incorpórea."
"Não tem átomos?"
"Julgo que não. É um... uh... um espírito."
"Bem, isso leva-me a formular uma outra pergunta", observou o matemático.
"Será que, um dia, no futuro, a minha alma se lembra desta minha existência?"
"Sim, dizem que sim."
"Mas isso não faz sentido, pois não?"
"Por que não?"
"Repara, Tomás. Como é que nós organizamos a nossa consciência? Como é que eu sei que sou eu, que sou um professor de Matemática, que sou teu pai e marido da tua mãe? Que nasci em Castelo Branco e que já estou quase careca? Como é que eu sei tudo sobre mim?"
"O pai conhece-se por causa do que viveu, do que fez e do que disse, do que ouviu e viu e aprendeu."
"Exato. Eu sei que sou eu porque tenho memória de mim mesmo, de tudo o que me aconteceu, mesmo o que aconteceu há apenas um segundo. Eu sou a memória de mim mesmo. E onde se localiza essa memória?"
"No cérebro, claro."
"Nem mais. A minha memória encontra-se localizada no cérebro, armazenada em células. Essas células fazem parte do meu corpo. E é aqui que está a questão. Quando o meu corpo morre, as células da memória deixam de ser alimentadas por oxigênio e morrem também. Apaga-se assim toda a minha memória, a lembrança do que eu sou.
Se assim é, como raio pode a alma lembrar-se da minha vida? Se a alma não tem átomos, não pode ter células da memória, não é? Por outro lado, as células onde a memória da minha vida se encontrava gravada já morreram. Nessas condições, como é que a alma se lembra do que quer que seja? Não achas tudo isso um pouco sem sentido?"
52
"Mas o pai fala como se nós fôssemos todos umas máquinas, uns computadores."
Abriu as mãos, como quem expõe uma evidência. "Eu tenho uma novidade para lhe dar. Nós não somos computadores, somos gente, somos seres vivos."
"Ah, sim? E qual é a diferença entre os dois?"
"Bem, nós pensamos, sentimos, vivemos. Os computadores não."
"E tens a certeza de que somos mesmo diferentes?"
"Então não somos, pai? Os seres vivos são biológicos, os computadores não passam de circuitos."
Manuel Noronha ergueu o rosto para cima, como se estivesse a falar para Alguém.
"E tirou este rapaz um doutoramento numa universidade..."
Tomás hesitou.
"Por que diz isso? Eu disse algum disparate?"
"O que disseste, filho, é o que qualquer biólogo diria, fica descansado. Mas, se perguntares a um biólogo o que é a vida, ele vai-te responder mais ou menos assim: a vida é um conjunto de processos complexos baseados no átomo de carbono." Ergueu o indicador. "Atenção. Mesmo o mais lírico dos biólogos reconhece, no entanto, que a expressão-chave desta definição não é átomo de carbono, mas processos complexos. É
verdade que todos os seres vivos que conhecemos são constituídos por átomos de carbono, mas não é isso verdadeiramente o que é estruturante para a definição da vida. Há bioquímicos que admitem que as primeiras formas de vida na Terra não foram baseadas nos átomos de carbono, mas nos cristais. Os átomos são apenas a matéria que torna a vida possível. Não interessa se é o átomo A ou o átomo B. Imagina que eu tenho o átomo A na cabeça e que, por algum motivo, ele é substituído pelo átomo B. Será que eu deixo de ser eu só por esse motivo?" Abanou a cabeça. "Não me parece. O que faz com que eu seja eu é um padrão, uma estrutura de informação. Ou seja, não são os átomos, é a forma como os átomos se organizam." Tossiu. "Sabes de onde é que vem a vida?"
"Vem de onde?"
"Vem da matéria."
"Ora, grande novidade!"
"Não estás a perceber onde é que eu quero chegar." Bateu com o dedo na mesa.
"Os átomos que estão no meu corpo são exatamente iguais aos átomos que estão nesta mesa ou numa qualquer galáxia distante. Eles são todos iguais. A diferença está na forma como eles se organizam. O que é que achas que organiza os átomos de modo a formarem células vivas?"
"Uh... não sei."
"Será uma força vital? Será um espírito? Será Deus?"
"Se calhar..."
"Não, filho", disse, abanando a cabeça. "O que organiza os átomos de modo a formarem células vivas são as leis da física. É essa a questão central. Repara, como pode um conjunto de átomos inanimados formar um sistema vivo? A resposta está na existência de leis de complexidade. Todos os estudos mostram que os sistemas se organizam espontaneamente, de modo a criarem sempre estruturas cada vez mais complexas, em obediência a leis da física e exprimindo-se por equações matemáticas.
Houve até um físico que ganhou o Prêmio Nobel por demonstrar que as equações 53
matemáticas por detrás das reações químicas inorgânicas são semelhantes às equações que regem os padrões de comportamento simples de sistemas biológicos avançados. Ou seja, os organismos vivos são, na verdade, o produto de uma incrível complexificação dos sistemas inorgânicos. E essa complexificação não resulta da atividade de uma qualquer força vital, mas da organização espontânea da matéria.
Uma molécula, por exemplo, pode ser constituída por um milhão de átomos ligados de uma forma muito específica e complicada, e a sua atividade é controlada por estruturas químicas tão complexas que se assemelham a uma cidade.
Entendes onde eu quero chegar?"
"Hmm... sim."