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"O segredo da vida não está nos átomos que constituem a molécula, está na sua estrutura, na sua organização complexa. Essa estrutura existe porque obedece a leis de organização espontânea da matéria. E, da mesma maneira que a vida é o produto da complexificação da matéria inerte, a consciência é o produto da complexificação da vida. A complexidade da organização é que é a questão-chave, não é a matéria." Abriu uma gaveta e pegou num livro de receitas, que abriu, exibindo o interior. "Estás a ver estas letras? Estão impressas com que cor de tinta?"

"Preta."

"Imagina que, em vez de tinta preta, o tipógrafo utilizava tinta roxa." Fechou o livro e acenou com ele. "Será que a mensagem deste livro deixaria de ser a mesma?"

"Claro que não."

"É evidente que não. O que faz a identidade deste livro não é a cor da tinta das letras, é uma estrutura de informação. Não importa que a tinta seja preta ou roxa, importa é o conteúdo informativo do livro, a sua estrutura. Posso ler um Guerra e Paz impresso com fonte Times New Roman e outro Guerra e Paz de uma editora diferente impresso com fonte Arial, mas o livro será sempre o mesmo. É, em qualquer circunstância, o Guerra e Paz de Leo Tolstoi. Pelo contrário, se tiver um Guerra e Paz e um Anna Karenina impressos com a mesma fonte, por exemplo Times New Roman, isso não fará com que os dois livros se tornem a mesma coisa, pois não? O que é estruturante, pois, não é a fonte nem a cor da tinta das letras, é a estrutura do texto, a sua semântica, a sua organização. O mesmo se passa com a vida. Não importa se a vida é baseada no átomo de carbono ou em cristais ou em qualquer outra coisa. O que faz a vida é uma estrutura de informação, é uma semântica, é uma organização complexa. Eu chamo-me Manuel e sou professor de Matemática. Podem-me tirar o átomo A e meter o átomo B no corpo, mas, desde que esta informação seja preservada, desde que esta estrutura se mantenha intacta, eu continuo a ser eu. Podem-me mudar todos os átomos e substituí-los por outros, que eu continuo a ser eu. Aliás, já está provado que, ao longo da vida, vamos mesmo mudando quase todos os átomos.

E, no entanto, eu continuo a ser eu. Peguem no Benfica e mudem-lhe todos os jogadores. Mas o Benfica permanece, continua a ser o Benfica, independentemente de jogar este ou aquele jogador. O que faz o Benfica não são os jogadores A ou B, é um conceito, é uma semântica, é uma estrutura de informação. O mesmo se passa com a vida. Não interessa qual o átomo que, num dado momento, preenche a estrutura. O

que interessa é a estrutura em si. Desde que os átomos viabilizem a estrutura de informação que define a minha identidade e as funções dos meus órgãos, a vida é possível. Entendeste?"

"Sim."

"A vida é uma muito complexa estrutura de informação e todas as suas atividades envolvem processamento de informação." Tossiu. "Esta definição, no 54

entanto, tem uma profunda consequência. É que, se o que constitui a vida é um padrão, uma semântica, uma estrutura de informação que se desenvolve e interage com o mundo em redor, nós, feitas as contas, somos uma espécie de programa. A matéria é o hardware, a nossa consciência é o software." Encostou o dedo à testa. "Nós somos um muito complexo e avançado programa de computador."

"E qual é o programa desse... uh... computador?"

"A sobrevivência dos genes. Há biólogos que definiram o ser humano como uma máquina de sobrevivência, uma espécie de robô programado cegamente para preservar os genes. Eu sei que, assim postas as coisas, parece chocante, mas é isso que nós somos. Computadores programados para preservar genes."

"Por essa definição, um computador é um ser vivo."

"Sem dúvida. É um ser vivo que não é construído por átomos de carbono."

"Mas isso não é possível!"

"Por que não?"

"Porque um computador limita-se a reagir a um programa pré-definido."

"Que é o que fazem todos os seres vivos baseados nos átomos de carbono", devolveu o pai. "O teu problema é que um computador é uma máquina que funciona na base do estímulo-resposta programada, não é?"

"Uh... sim."

"E o cão de Pavlov? Não funciona na base do estímulo-resposta programada? E

uma formiga? E uma planta? E um gafanhoto?"

"Bem... sim, mas é... diferente."

"Não é nada diferente. Se conhecermos o programa do gafanhoto, se soubermos o que o atrai e o repele, o que o motiva e o que o assusta, poderemos prever todo o seu comportamento. Os gafanhotos têm programas relativamente simples. Se acontecer X, eles reagem de maneira A. Se acontecer Y, eles reagem de maneira B. Exatamente como uma máquina concebida por nós."

"Mas os gafanhotos são máquinas naturais. Os computadores são máquinas artificiais."

Manuel olhou em redor da cozinha, à procura de uma idéia. A sua atenção fixou-se na janela, numa árvore erguida no passeio em frente, para onde um pardal esvoaçou.

"Olha ali para as aves. Os ninhos que eles constroem nas árvores são naturais ou artificiais?"

"São naturais, claro."

"Então tudo o que o homem faz também é natural. Nós, que temos um conceito antropocêntrico da natureza, é que dividimos tudo entre coisas naturais e coisas artificiais, sendo que definimos que as artificiais são as feitas pelos homens e as naturais feitas pela natureza, pelas plantas e pelos animais. Mas isso é uma convenção humana. A verdade é que, se o homem é um animal, tal como as aves, então é uma criatura natural, certo?"

"Sim."

"Sendo uma criatura natural, tudo o que ele faz é natural. Logo, as suas criações são naturais, da mesma maneira que o ninho feito pelas aves é uma coisa natural."

Tossiu. "O que eu quero dizer é que tudo na natureza é natural. Se o homem é um 55

produto da natureza, então tudo o que ele faz também é natural. Apenas por uma convenção de linguagem se estabeleceu que os objetos que ele cria são artificiais, quando, na verdade, são tão naturais quanto os objetos que as aves criam. Logo, sendo criações de um animal natural, os computadores, tais como os ninhos, são naturais."

"Mas não têm inteligência."

"Nem as aves ou os gafanhotos têm." Fez uma careta. "Ou melhor, as aves, os gafanhotos e os computadores têm inteligência. O que eles não têm é a nossa inteligência. Mas, por exemplo, no caso dos computadores, nada garante que, daqui a cem anos, eles não venham a ter uma inteligência igual ou superior à nossa. E, se atingirem o nosso grau de inteligência, podes estar certo de que desenvolverão emoções e sentimentos e tornar-se-ão conscientes."

"Isso não acredito."

"Que possam ter emoções e tornarem-se conscientes?"

"Sim. Não acredito nisso."

Manuel Noronha foi assaltado por um súbito ataque de tosse, uma tosse tão cavada que parecia quase expulsar os pulmões pela boca. O filho ajudou-o a recompor-se, oferecendo-lhe água e procurando acalmá-lo. Quando o ataque morreu, Tomás olhou para o pai com ar apreensivo.

"O pai está bem?"

"Sim."

"Quer ir deitar-se um pouco? Se calhar é..."

"Eu estou bem, deixa estar", atalhou o velho matemático.

"Veja lá."

"Eu estou bem, eu estou bem", insistiu, recuperando o fôlego. "Onde é que íamos?"

"Oh, não interessa."

"Não, não. Eu quero explicar-te isto, é importante."

Tomás hesitou e fez um esforço de memória.

"Uh... dizia-lhe eu que não acredito que os computadores possam ter emoções e consciência."