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Ariana abanou a cabeça.

"Não pode ser. Tenho de me dar ao respeito."

O historiador abriu as mãos, num gesto de desistência.

"Como queira", disse. "Mas, diga-me uma coisa. Como é que os iranianos vêem uma mulher como você, assim bela, ocidentalizada, divorciada, a viver sozinha?"

"Bem, eu só vivo sozinha aqui em Teerã. Em Isfahan estava em casa da minha família. Sabe

que, aqui, há o costume de a família viver toda junta. Irmãos, avós, netos, tudo debaixo do mesmo

tecto. Mesmo os filhos, quando casam, ainda ficam algum tempo a viver com os pais."

"Hmm-hmm", murmurou Tomás. "Mas não respondeu à minha pergunta. Como é que os seus compatriotas encaram o seu modo de vida?"

A iraniana respirou fundo.

"Não muito bem, como seria de esperar." Fez um ar pensativo. "Sabe, as mulheres aqui não têm muitos direitos. Quando veio a Revolução Islâmica, em 1979, as coisas mudaram muito. O hejab tornou-se obrigatório, a idade de casamento para raparigas foi fixada nos nove anos e as mulheres foram proibidas de aparecer em público com um homem que não fosse da sua família ou a viajar sem consentimento do marido ou do pai. O adultério pela mulher passou a ser punido com

apedrejamento até à morte, mesmo nos casos em que ela era violada, e até o uso incorreto do hejab passou a dar direito a vergastadas."

"Caramba", exclamou Tomás. "As mulheres começaram a ter vida difícil, hem?"

"Pode crer. Eu, na altura, estava em Paris, pelo que não passei por essas vergonhas todas. Mas ia acompanhando isto tudo à distância, não é? As minhas irmãs e as minhas primas foram-me pondo ao corrente dos novos tempos. E acredite que eu não teria vindo em 1995 se achasse que as coisas iriam ficar na mesma. Na altura estavam a emergir os reformadores, havia sinais de abertura e eu... enfim, resolvi arriscar."

"Você é muçulmana?"

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"Claro."

"Não lhe choca o modo como o Islã trata as mulheres?"

Ariana fez um ar atrapalhado.

"O profeta Maomé disse que os homens e as mulheres têm diferentes direitos e responsabilidades." Ergueu o dedo. "Repare, ele não disse que uns têm mais direitos do que os outros, disse apenas que são diferentes. É a forma como esta frase do profeta foi interpretada que está por detrás de todos estes problemas."

"Acha que Deus está realmente preocupado em saber se as mulheres usam véu ou não usam véu, se podem casar com nove, treze ou dezoito anos, se têm relações extraconjugais? Acha que Deus se incomoda com essas coisas?"

"É claro que não. Mas o que eu acho é irrelevante, não é? Esta sociedade funciona como funciona e não há nada que eu possa fazer para alterar as coisas."

"Mas é a sociedade que funciona assim ou é o Islão que funciona assim?"

"Não sei, acho que é a sociedade e a forma como ela interpreta o Islã", observou Ariana, pensativa. "O Islã é sinônimo de hospitalidade, de generosidade, de respeito pelos mais velhos, de sentido de família e de comunidade. A mulher realiza-se aqui como esposa e como mãe, tem o seu papel definido e tudo é claro." Encolheu os ombros. "Mas quem quiser algo mais... enfim, talvez saia frustrada, não é?"

Fez-se silêncio.

"Está arrependida?"

"De quê?"

"De ter voltado. Está arrependida?"

Ariana encolheu os ombros.

"Gosto da minha terra. É aqui que está a minha família. As pessoas são fantásticas, já reparou? Lá fora têm a idéia de que isto é tudo um bando de fanáticos, de gente que passa o dia a queimar bandeiras americanas, a gritar contra o Ocidente e a disparar kalashnikov para o ar, quando, na realidade, não é bem assim." Sorriu.

"Até bebemos Coca-Cola."

"Já reparei. Mas voltou a não responder à minha pergunta."

"Qual pergunta?"

"Você sabe muito bem. Está arrependida de ter voltado ao Irã?"

A iraniana respirou fundo, algo intranquila com a questão.

"Não sei", disse por fim. "Procuro algo."

"Procura o quê?"

"Não sei. Quando encontrar, saberei."

"Procura alguém?"

"Talvez." Voltou a encolher os ombros. "Não sei, não sei. Acho que... procuro um sentido."

"Um sentido?"

"Sim, um sentido. Um sentido para a minha vida. Sinto-me um pouco perdida, meio caminho entre Paris e Isfahan, algures numa terra de ninguém, numa pátria desconhecida que não é francesa nem iraniana, que não é europeia nem asiática, mas, ao mesmo tempo, é tudo isso. A verdade é que ainda não encontrei o meu lugar."

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O empregado turco, de pele morena e um ligeiro toque mongol, apareceu com a travessa do jantar. Colocou o mirza gbasemi diante de Ariana e o broke à frente de Tomás, mais dois copos de ab portugal, o sumo de laranja que ambos encomendaram em homenagem ao país do visitante, afinal de contas não é qualquer nação que tem um nome que se confunde com uma fruta em parsi. Para lá da janela, um mar de luzes tremeluzia pela escuridão, era Teerã a brilhar à noite, a cidade resplandecia até à linha do horizonte e para lá dela cintilava como uma imensa árvore de Natal.

"Tomás", murmurou Ariana, bebericando o sumo. "Gosto de falar consigo."

O português sorriu.

"Obrigado, Ariana. Obrigado por me chamar Tomás."

VII

O edifício era um bloco compacto de cimento, um monstro escondido por um muro alto, no topo do qual assentava uma coroa de arame farpado, e decorado por acácias frondosas, numa ruela oculta de Teerã. O motorista baixou o vidro da janela do carro e falou em parsi com o guarda; o homem armado espreitou para o banco de trás da viatura, os olhos dançando por momentos entre Ariana e Tomás, e regressou ao casinhoto. A cancela foi levantada e o automóvel estacionou junto a uns arbustos.

"É aqui que você trabalha?", perguntou Tomás, avaliando o edifício cinzento.

"Sim", disse a iraniana. "É o Ministério da Ciência, Pesquisa e Tecnologia."

A primeira preocupação foi a de registar o visitante, atribuindo-lhe um cartão que lhe permitia frequentar o ministério durante um mês. O processo revelou-se moroso na secretaria, onde o pessoal, sempre sorrindo e manifestando uma simpatia e cerimônia que chegava a roçar o absurdo, o obrigou a preencher sucessivos formulários.

Já com o cartão na mão, Tomás foi levado ao segundo andar e apresentado ao director do departamento de projetos especiais, um homem baixo e magro, de pequenos olhos escuros e barba grisalha pontiaguda.

"Este é agha Mozaffar Jalili", disse Ariana. "Está a trabalhar comigo neste... uh...

projeto."

"Sob bekbeir", cumprimentou o iraniano, sorridente.

"Bom dia", devolveu Tomás. "É o senhor que está encarregado do projeto?"

O homem fez um gesto vago com a mão.

"Formalmente, sim." Olhou de relance para Ariana. "Mas, na prática, é a khanom Pakravan quem está a conduzir os trabalhos. Ela tem... uh... qualificações especiais e eu limito-me a prestar-lhe toda a assistência logística. O senhor ministro considera este projeto de grande valor científico, sabe? De modo que determinou que os trabalhos devem prosseguir sem demora, sob a direção da khanom Pakravan."

O português olhou para os dois.

"Muito bem. Então vamos a isso, não é?"

"Quer começar já?", perguntou Ariana. "Não prefere tomar um chay primeiro?"

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"Não, não", devolveu ele, esfregando as mãos. "Já comi no hotel. Agora é hora de trabalhar. Mal posso esperar para pôr os olhos no documento."

"Muito bem", disse a iraniana. "Vamos a isso."