Subiram os três ao terceiro andar e entraram numa sala espaçosa, com uma mesa longa no centro e seis cadeiras. As paredes apresentavam-se cobertas de armários com dossiers e dois vasos de
plantas emprestavam cor ao local. Tomás e Jalili sentaram-se à mesa, o iraniano envolvido numa conversa de circunstância, enquanto Ariana se ausentou. Pelo canto do olho, o português apercebeu-se de que ela entrou no gabinete seguinte, onde permaneceu alguns minutos. Reapareceu com uma caixa na mão e depositou-a sobre a mesa.
"Aqui está", anunciou.
Tomás estudou a caixa. Era de cartão reforçado, com aspecto gasto e usado, um lacinho roxo a selar a entrada.
"Posso ver?"
"Com certeza", disse ela, desfazendo o lacinho. Abriu a caixa e tirou do interior um manuscrito amarelecido, de poucas páginas, que colocou diante de Tomás. "Aqui está."
O historiador sentiu o cheiro adocicado do papel velho. A primeira página, uma folha quadriculada cuja fotocópia já tinha visto no Cairo, apresentava o título datilografado em letra de máquina antiga e um poema.
DIE GOTTESFORMEL
Terra if fin
De terrors tigbt
Sabbath fore
Christ nite
A. Einstein
Por baixo, o rabisco com o nome gatafunhado de Albert Einstein.
"Hmm", murmurou o historiador. "Que poema é este?"
Ariana encolheu os ombros.
"Não sei."
"Não foi saber?"
"Fui. Consultamos a Faculdade de Letras da Universidade de Teerã e conversamos com vários professores de literatura inglesa, incluindo peritos em poesia, mas ninguém reconheceu o poema."
"Estranho." Voltou as páginas e analisou os rabiscos escrevinhados a tinta permanente negra, por vezes intercalados por equações. Página atrás de página, 68
sempre os mesmos gatafunhos e mais equações. Eram vinte e duas páginas, todas numeradas no canto superior direito. Depois de as folhear com vagar e em silêncio, Tomás realinhou-as em bloco e mirou Ariana. "É isto tudo?"
"Sim."
"E onde está a parte que precisa de ser decifrada?"
"É a última folha."
O português tirou a folha que se encontrava no final do manuscrito e estudou-a com curiosidade. Tinha os mesmos rabiscos em alemão, mas terminava com umas palavras enigmáticas.
See sign
!ya ovqo
"Não percebo esta caligrafia", queixou-se Tomás. "O que está aqui escrito?"
"Bem, pela nossa análise caligráfica parece ser !ya e ovqo."
"Hmm", murmurou. "Sim, parece isso..."
"E, em cima, a expressão see sign."
"Mas isso é inglês."
"Sem dúvida."
O historiador fez um ar admirado.
"O que vos leva então a pensar que se trata de uma cifra em português?"
"A caligrafia."
"O que tem ela?"
"Não é de Einstein. Ora repare."
Ariana indicou com o dedo as linhas em alemão e as linhas em inglês, comparando-as.
"De fato", concordou Tomás. "Parecem redigidas por mão diferente. Mas não vejo nada aqui a sugerir mão portuguesa."
"É mão portuguesa."
"Como sabe?"
"Einstein trabalhou neste documento com um físico português que estava a estagiar no Institute for Advanced Study. Já comparamos essas palavras com a caligrafia do estagiário e a conclusão foi positiva. Quem redigiu essa frase enigmática foi, sem dúvida, o português."
Tomás mirou a iraniana. Era evidente que o português se tratava do professor Augusto Siza, mas até que ponto estaria ela disposta a falar do cientista desaparecido?
"Por que não entram em contato com esse português?", perguntou o historiador, fingindo desconhecer o assunto. "Se ele era jovem nessa altura, provavelmente ainda estará vivo."
Um rubor de atrapalhação encheu o rosto de Ariana.
"Esse português está... uh... indisponível."
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Ah, pensou Tomás. Estás a esconder algo.
"Como assim, indisponível?"
Jalili interveio em socorro de Ariana. O pequeno iraniano agitou a mão, num gesto impaciente.
"Não interessa, professor. O fato é que não temos acesso a esse seu compatriota e precisamos de perceber o que quer isto dizer." Olhou de relance para a folha. "O
senhor acha que consegue decifrar essa trapalhada?"
Tomás voltou a passar os olhos pela charada, pensativo.
"Preciso que me arranje uma tradução completa do texto em alemão", pediu o historiador.
"A tradução completa do manuscrito?"
"Sim, tudo."
"Não pode ser", disse Jalili.
"Perdão?"
"Não lhe posso arranjar a tradução do texto em alemão. Está absolutamente fora de questão."
"Porquê?"
"Porque tudo isto é confidencial", exclamou o iraniano, pegando no manuscrito e arrumando-o na caixa. "Apenas lhe foi mostrado para que o senhor sentisse algum contacto com o trabalho original. Vou-lhe escrever num papel a charada e terá que fazer todo o seu trabalho com base nesse papel."
"Mas porquê?"
"Porque este documento é confidencial, já lhe disse."
"Mas como posso eu decifrar a charada se não conhecer o texto anterior? Pode muito bem acontecer que o texto em alemão encerre o segredo da charada, não é?"
"Lamento, mas são as nossas ordens", insistiu Jalili. Olhou para a última página e copiou a charada de letras para uma folha A4 lisa. "Esta folha vai ser doravante o seu material de trabalho."
"Não sei se, nestas condições, consigo fazer o meu trabalho."
"Conseguirá." Soergueu o sobrolho. "Aliás, nem tem outro remédio. Por ordens do senhor ministro, o senhor só será autorizado a sair do Irã quando completar a decifração."
"O quê?"
"Lamento, mas são as nossas ordens. A República Islâmica está-lhe a pagar bem para decifrar este trecho e deu-lhe acesso a um documento confidencial muito valioso.
Compreenderá naturalmente que a confidencialidade tem um preço. Se o senhor sair do Irã sem completar o trabalho, cria-se um problema de segurança nacional, uma vez que o trecho em questão poderá ser decifrado lá fora e nós, que temos o documento original, permaneceremos sem compreender esta peça-chave." O rosto crispado distendeu-se um pouco e Jalili sorriu, esforçando-se por ser amável e dissipar a tensão súbita. "De qualquer modo, não vejo razões para que não conclua com sucesso a
sua missão. Nós ficaremos com a tradução completa e o senhor irá para casa um pouco mais rico."
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O português trocou de olhar com Ariana. A mulher fez um gesto de impotência, nada daquilo dependia dela. Percebendo que não dispunha de alternativas, Tomás virou-se para Jalili e suspirou, resignado.
"Muito bem", disse. "Mas já que vou fazer isto, é melhor fazer o trabalho completo, não é?"
O iraniano hesitou, sem perceber esta observação.
"Onde quer chegar?"
Tomás apontou para o manuscrito, já arrumado dentro da caixa de cartão.
"Quero chegar a essa primeira página. Será que também me pode copiar, se faz favor?"
"Copiar a primeira página?"
"Sim. Ela não esconde nenhum segredo terrível, pois não?"
"Não, tem apenas o título do manuscrito, o poema e a assinatura de Einstein."
"Então copie-me isso."
"Mas porquê?"
"Por causa desse poema, claro."
"O que tem o poema?"
"Ora! Não é evidente?"
"Não. O que tem ele?"
"O poema, meu caro, é outra charada."
O resto da manhã foi passado a tentar decifrar as duas charadas, mas sem sucesso. Tomás partiu sempre do princípio de que a segunda ocultava uma mensagem em português e imaginava que a referência see sign, a anteceder a algaraviada, era uma qualquer pista, mas não conseguia perceber qual. Já o poema lhe parecia remeter para uma mensagem em inglês, embora igualmente aqui os seus esforços esbarrassem numa opaca barreira de incompreensibilidade.