À hora do almoço, Tomás e Ariana foram a um restaurante ali perto comer um makhsus kebab, confeccionado com carne de carneiro picada.
"Peço desculpa pela forma como o agba Jalili falou consigo", disse ela, depois do empregado ter trazido a comida. "Os iranianos são habitualmente muito educados, mas este problema é de extrema sensibilidade. O manuscrito de Einstein tem prioridade e confidencialidade máxima, pelo que não podemos correr riscos. A sua estada no Irã enquanto decorre o trabalho de decifração constitui uma questão de segurança nacional."
"Eu não me importo de aqui ficar algum tempo", respondeu Tomás, enquanto mastigava um pedaço de kebab. "Desde que você esteja sempre por perto, claro."
Ariana baixou os olhos e sorriu levemente.
"Espero que isso queira dizer que apenas precisa da minha assistência científica."
"Ah, sim", exclamou o português com ar peremptório. "É apenas isso que espero de si." Fez uma expressão inocente. "Apenas assistência científica, nada mais."
A iraniana inclinou a cabeça.
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"Por que será que não acredito em si?"
"Não faço a mínima ideia", riu-se ele.
"Vai-se portar bem, não vai?"
"Vou, vou."
"Por favor, Tomás", implorou ela. "Não se esqueça de que isto não é o Ocidente, está bem? Este é um país especial, onde as pessoas não se podem dar a certas liberdades. Não me vai embaraçar, pois não?"
O português fez uma expressão conformada.
"Pronto, já percebi", disse. "Nada farei que a atrapalhe, fique descansada."
"Ainda bem."
Tomás mirou o que restava do kebab na mão. O sentido da conversa dera-lhe o pretexto que precisava para fazer o que tinha a fazer.
"Depois do almoço, vou passear", anunciou.
"Ah, sim? Onde quer que o leve?"
"Não, você não vem. Se andar sempre comigo, isso poderá gerar alguns comentários desagradáveis para si. Afinal de contas, e como você diz, este é um país especial, não é?"
"Sim, tem razão", admitiu Ariana. "Vou ver se lhe arranjo um guia."
"Não preciso de guia."
"Claro que precisa. Como é que se vai orientar por..."
"Não preciso de guia", repetiu Tomás, mais enfático.
"Bem... uh... há o problema da segurança, percebe? A sua segurança é da nossa responsabilidade, precisamos que alguém o acompanhe para zelar por si."
"Que disparate! Eu sei muito bem cuidar de mim."
Ariana olhou-o, desconcertada.
"Ouça, eu vou-lhe arranjar um guia na mesma."
"Não quero, já disse."
Ela ficou um instante calada, como se estivesse a pensar. Baixou então a cabeça e inclinou-se para o seu convidado.
"Não o posso deixar assim sozinho, não entende?", sussurrou muito rapidamente.
"Se você sair sem eu dizer nada a ninguém, posso ser punida." A voz adotou um tom de imploração sedutora. "Deixe-me arranjar-lhe um guia, por favor. Se você depois o despistar, problema do guia, já não tenho nada a ver com isso, não é?" Arregalou muito os olhos melados, em busca de assentimento. "Está de acordo?"
Tomás fitou-a por um momento e acabou por balançar afirmativamente a cabeça.
"Está bem", aceitou. "Chame lá o gorila."
O gorila era um homem baixo e largo, com barba rala forte e sobrancelhas negras carregadas, todo vestido de escuro e com ar de agente de segurança.
"Saiam", saudou o guia que Ariana lhe apresentou. "Haletun chetor e?"
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"Ele pergunta se está tudo bem."
"Está, diga-lhe que está tudo bem."
"Khubam", disse ela ao guia.
O homem bateu com o dedo no peito.
"Esmam Rabim e", anunciou, sempre de olhos cravados no historiador. "Rahim."
Tomás percebeu.
"Rahim?" Foi a vez de ser o português a bater no peito. "Eu sou Tomás. Tomás."
"Ah, Tomás", sorriu ele. "Az ashnayitun kbosbbakhtam."
O historiador fez um sorriso amarelo e mirou a iraniana pelo canto do olho.
"Isto promete", disse entre dentes. "Sinto-me como o Tarzan a conversar com a Jane." Fez uma careta. "Me Tomás, you Rahim."
Ariana riu-se.
"Vão-se entender lindamente, vai ver."
“Só se você aceitar ser a minha Jane..."
A iraniana olhou em redor, para se certificar de que ninguém o tinha escutado.
"Vá, não comece", pediu, atrapalhada. "Onde quer que ele o leve?"
"Ao bazar. Apetece-me passear e fazer umas compras."
Rahim recebeu as indicações e entraram ambos num Toyota negro, um carro do ministério colocado à disposição do português para as suas voltinhas nessa tarde. O
automóvel mergulhou no caótico trânsito de Teerão e convergiu em direcção ao sul da cidade; à medida que progrediam, a construção ia-se tornando pior, tudo parecia ainda mais congestionado, desordenado e degradado do que no resto da vasta urbe de catorze milhões de habitantes.
O motorista foi sempre tagarelando em parsi, enquanto Tomás assentia distraidamente, nada compreendendo e nada querendo compreender, os olhos perdidos no confuso e poluído emaranhado de ruas e casas, a mente a congeminar como se iria livrar do seu palrador guia-motorista-protetor-vigilante. A determinado ponto, seguiam por uma alameda, Rahim apontou para uns comerciantes e disse mais qualquer coisa em parsi, a expressão bazaris algures lá no meio. Alertado por essa palavra, como se uma sineta de alarme lhe tivesse soado aos ouvidos, Tomás procurou freneticamente indicações e apercebeu-se de uma tabuleta a referir que aquela era a Avenida Khordad. Conhecia-a do mapa que estudara atentamente na noite anterior, pelo que nem hesitou. Num gesto brusco abriu a porta do carro e saltou para o meio da avenida, desencadeando um tropel de travagens e buzinadelas.
"Bye-bye!", disse, acenando de fugida ao estupefato Rahim, que permanecia agarrado ao volante, de boca aberta, a ver o português volatilizar-se diante de si.
O motorista despertou da breve letargia provocada pela surpresa e parou o carro em plena Khordad, atirando-se também cá para fora, sempre a gritar em parsi; mas, por essa altura, já o seu cliente se embrenhara na multidão e tinha desaparecido na teia de ruelas que marcava o princípio do grande bazar de Teerã.
VIII
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Um labirinto de ruas estreitas, becos e lojas de todas as espécies assinalava o coração comercial da capital do Irã. O bazar revelou-se uma cidade dentro de uma cidade, as ruelas a abrirem-se por vezes em praças e pracetas, as pequenas lojas intercaladas por mesquitas, bancos, pensões e até um quartel de bombeiros. Um teto semitransparente cobria o emaranhado de artérias, lançando uma protetora sombra sobre o velho mercado. Uma densa corrente humana apinhava-se por aquela rede labiríntica, mas, apesar de se aglomerarem ali tantas pessoas, todas caminhando ao passo lento de
quem sabe que o dia é para ser fruído, uma frescura aprazível enchia os corredores, cada canto perfumado por um odor característico.
Numa ruela dominada por lojinhas de especiarias, onde os aromáticos produtos coloridos se encontravam expostos ao ar livre, Tomás pôs a mão no bolso e retirou o papel que escrevinhara com a indicação do nome que procurava.
"Salam", disse a um comerciante. "Zamyad Shirazi?"
"Shirazi?"
"Bale."
Uma algaraviada em parsi jorrou da boca do homem e o português procurou concentrar-se nos gestos da mão, que lhe indicavam para seguir em frente e, algures sobre o mar de cabeças lá ao fundo, virar à esquerda. Agradeceu as indicações e avançou pela rua das especiarias até apanhar a perpendicular à esquerda. Meteu pela rua dos cobres e voltou a pedir informações, tendo a sua rota sido corrigida.