"Qual a diferença?"
"O código implica a substituição de palavras ou frases. A cifra remete para a substituição de letras. Por exemplo, se ficar acordado entre nós que você passa a ser 80
designada por Raposa, isso é um código. Substituí o nome Ariana pelo nome de código Raposa, percebe?"
"Sim."
"Mas se ficar acordado entre nós que vou trocar os a pelos i, então, se eu escrever Iraini, na verdade estou a dizer o nome Ariana. Apenas troquei as letras. Isso é uma cifra."
"Entendi."
"Olhando para estas charadas, a segunda é evidentemente uma mensagem cifrada." Balançou a cabeça. "Vai ser difícil decifrá-la. É melhor deixá-la para depois."
"Prefere então concentrar-se na primeira charada?"
"Sim. O poema poderá ser mais fácil."
"Acha que é um código?"
"Acho." Esfregou o queixo. "Para já, repare no tom geral do poema. Já viu? Qual é o sentimento que transmite?"
Ariana concentrou-se nos quatro versos.
"«Terra if fin, de terrors tight, Sabbath fore, Christ nite»", leu em voz alta. "Não sei. Parece... sombrio, tenebroso, terrível."
"Catastrofista?"
"Sim, um pouco."
"Claro que é catastrofista. Já viu bem o primeiro verso?"
"Não o entendo. O que quer dizer Terra?"
"É uma palavra latina, também usada pela língua portuguesa. Significa Terra, o nosso planeta. E fin é francês para fim. O primeiro verso parece colocar a hipótese do Apocalipse, o fim dos dias, a destruição da Terra." Mirou a iraniana. "Qual é o tema do manuscrito de Einstein?"
"Não lhe posso dizer."
"Ouça, o tema pode ser relevante para a interpretação deste poema. Há alguma coisa no texto manuscrito que possibilite uma grande catástrofe, uma grave ameaça à vida na Terra?"
"Já disse que não lhe posso dizer. Isto é matéria confidencial."
"Mas não vê que preciso de saber isso para poder interpretar o poema?"
"Eu entendo, mas nada vai arrancar de mim. O mais que posso fazer é remeter o assunto aos meus superiores hierárquicos, designadamente o ministro. Se ele ficar convencido da necessidade de o informar sobre o conteúdo do manuscrito, tanto melhor."
Tomás suspirou, resignado.
"Muito bem, fale então com ele e explique-lhe o problema." Concentrou-se de novo no poema.
"Veja agora este segundo verso. «De terrors tight». Um terror apertado. Mais uma vez, o tom catastrofista, alarmante, sombrio. Tal como no primeiro verso, a interpretação deste segundo verso poderá estar também diretamente relacionada com o tema do manuscrito de Einstein."
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"Sem dúvida. É tudo um pouco... arrepiante."
"O que quer que esteja nesse manuscrito, pode crer que era algo que deixou Einstein absolutamente impressionado. Tão impressionado que até o vemos a voltar-se para a religião nos terceiro e quarto versos. Está a ver? «Sabbath fore, Christ nite»."
Torceu os lábios, pensativo. "O Sabbath é o dia que Deus abençoou, após os seis dias da Criação. É, por isso, o dia de descanso obrigatório dos judeus. Einstein era judeu e voltou-se aqui para o Sabbath, como se olhasse para Deus em busca de salvação. Os fogos do inferno serão arrefecidos no Sabbath e, se todos os judeus forem capazes de respeitar completamente este dia, o Messias virá." Deslizou os olhos para a derradeira linha. "O quarto verso reforça esse apelo ao misticismo como solução para o terror apertado, para os fogos do inferno que ameaçam pôr fim à Terra. Mie é uma forma corrupta de dizer night. «Christ nite». A noite de Cristo." Mirou Ariana. "Outra referência tenebrosa."
"Acha que este tom sombrio constitui a mensagem?"
Tomás pegou na sua chávena fumegante de chay e bebericou um pouco.
"Pode não constituir toda a mensagem, mas constitui sem dúvida parte da mensagem." Pousou a chávena. "Einstein estava evidentemente assustado com o que descobriu ou inventou e achou por bem colocar este aviso como epígrafe do manuscrito. O que quer que seja A Fórmula de Deus, minha cara, é decerto algo que mexe com poderes fundamentais da natureza, com forças que nos ultrapassam. É por isso que eu digo ser importante que me mostrem o conteúdo do documento. Sem o conhecer, a minha capacidade de descodificar este poema está seriamente limitada."
"Já lhe disse que vou colocar a questão ao ministro", repetiu a iraniana. Pousou os olhos de novo no poema. "Mas acha que o poema poderá ocultar mais mensagens?"
Tomás oscilou a cabeça para cima e para baixo, assentindo.
"Acho. A minha impressão é que há aqui mais alguma coisa."
"Por que diz isso?"
"Não sei, é um... sei lá, é uma... uh... impressão, um feeling que eu tenho."
"Um feeling?"
"Sim. Sabe, quando ontem li o poema com atenção, lá no ministério, saltou-me aos olhos esta estranha estrutura dos versos. Já reparou?" Pousou o indicador no poema rabiscado na folha. "Este é um inglês um pouco esquisito, não acha? Se formos a ler literalmente, há algo que não bate certo. O sentido geral está lá, mas o sentido específico escapa-nos. Ora veja, vamos tentar perceber o significado literal dos versos.
«Se a Terra chegar ao fim, o terror aperta, destaca-se o Sabbath, noite de Cristo». Mas o que raio quer isto dizer?"
"Bem, ele procura, em primeiro lugar, obter uma rima."
"Isso é verdade", concordou Tomás. "Tight rima com nite. Mas também rima com night, não rima? Então, se rima, por que razão preferiu ele colocar nite em vez de night?"
"Para ficar mais sofisticado?"
O historiador fez uma careta, avaliando essa possibilidade.
"Talvez", concedeu. "Pode ser. Pode ser que tudo não passe de um mero efeito estilístico. Mas, cá para mim, continua a ser tudo muito estranho." Analisou o primeiro verso. "E por que razão ele diz Terra e não Earth? Porquê a palavra latina? E
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porquê fin e não end? Podia ter escrito Earth if end. Mas não. Teve de escrever «Terra if fin». Porquê?"
"Não seria para conferir um carácter misterioso ao poema?"
"Talvez. Mas, quanto mais olho para isto, mais se torna evidente uma coisa. Não sei explicar porquê. É um sentimento que me vem cá de dentro, uma espécie de sexto sentido. É, se quiser, a minha experiência de criptanalista a falar. Mas dessa coisa não tenho dúvidas."
"O quê?"
Tomás respirou fundo.
"Há aqui uma mensagem dentro de outra mensagem."
Passaram toda a manhã às voltas com o poema, procurando perceber qual o código que permitiria desatar o nó que o selava. Tomás depressa se apercebeu de que, tratando-se de uma mensagem codificada, a solução do problema era de uma complexidade extrema, uma vez que precisava de ter acesso ao livro de código, uma espécie de dicionário que lhe possibilitasse perceber o sentido de cada palavra do poema. Naturalmente que esse livro não se encontrava ali disponível, pelo que o criptanalista se pôs a conjecturar sobre o local onde um homem como Einstein o ocultaria. Seria em casa? Seria no instituto de Princeton onde fazia investigação? Tê-
lo-ia entregue a alguém? A verdade é que, se a mensagem foi codificada, tal aconteceu para que a generalidade das pessoas não a entendesse, mas também para que existissem pessoas específicas que a entendessem. Caso contrário, em vez de codificar a mensagem, Einstein simplesmente não a teria escrito. Se a escreveu é porque havia certamente um destinatário, alguém que possuía o livro de código que lhe permitiria descodificar o poema. Mas quem?
Quem?
O professor Siza era, nestas circunstâncias, um óbvio suspeito. Teria ele o livro do código? Seria ele o destinatário da mensagem? Tomás sentiu momentaneamente uma quase irreprimível vontade de perguntar a Ariana o que acontecera com o físico; a pergunta chegou até a assomar-lhe à boca, como um vômito que irrompe pela garganta sem controle, mas conseguiu travá-la a tempo, empurrá-la de volta às entranhas de onde emergira. A revelação implícita de que se encontrava a par da ligação entre o professor, o Hezbollah e o Irã, considerou Tomás, seria catastrófica; os iranianos logo perceberiam que tinha sido informado por alguém do meio e as suspeitas sobre as suas reais intenções emergiriam automaticamente. Isso era algo que ele não podia, de modo algum, permitir.