O táxi dobrou a esquina, apanhando a Avenida Moffateh em direcção a sul. O
carro parecia avançar sem sentido pelas ruas e avenidas de Teerã, algo que se tornou muito claro quando viraram na Enqelab e contornaram a Praça Ferdosi, voltando para a Enqelab, só que no sentido contrário. Era um percurso sem destino, em que apenas a viagem interessava, ou se calhar nem ela, o passeio não passava afinal de um mero pretexto para se reunirem longe dos olhares indiscretos.
Depois de abandonado o setor da embaixada, o colosso iraniano permaneceu algum tempo calado, de olhos fixos na alcatéia de carros que enchia as ruas, verdadeiros predadores nas mãos nervosas dos impacientes automobilistas da cidade.
"Recebi instruções de Langley", disse Bagheri por fim, sem deixar de observar o trânsito.
"Ah, sim? E o que dizem eles?"
"Ficaram aborrecidos por você não poder voltar a aproximar-se do manuscrito.
Querem saber se não há mesmo qualquer possibilidade de o fazer."
"Pelo que percebi, não há. O tipo do ministério parecia muito cioso dele, sempre a alegar segurança nacional. Se eu insistir, receio que isso apenas vá levantar suspeitas."
Bagheri tirou os olhos do trânsito e fitou Tomás, as sobrancelhas carregadas.
"Nesse caso, vamos ter uma grande chatice nas mãos."
"Uma grande chatice? Porquê?"
"Porque é inaceitável para a América que o manuscrito permaneça nas mãos iranianas."
"Mas o que podem os Estados Unidos fazer?"
"Há duas hipóteses numa situação que envolve a segurança nacional americana.
A primeira é bombardear o edifício onde o manuscrito está guardado."
"Como? Bombardear Teerã por causa... por causa disto?"
86
"Isto, caro professor, não é uma coisa qualquer. Isto são os planos para uma bomba atômica barata e fácil de produzir. Isto é uma ameaça à segurança internacional. Se um regime como o iraniano, que tem ligações a grupos terroristas, conseguir desenvolver armas nucleares de construção fácil, pode ter a certeza de que malucos como o Osama bin Laden e outros não vão voltar a atacar Nova Iorque com uns aviõezinhos. Eles vão ter ao seu dispor coisas bem mais... uh... explosivas, se é que entende o que quero dizer."
"Hmm, entendo."
"Nestas circunstâncias, bombardear um edifício em Teerã é o menor dos males, acredite."
"Acredito, acredito."
O iraniano voltou, por momentos, a mirar a paisagem para lá da janela do táxi.
"O fato de você ter visto ontem o manuscrito no Ministério da Ciência dá-nos a confirmação que precisávamos quanto ao seu paradeiro. Mas esta opção tem dois pontos contra. Um é que uma ação militar desta natureza tem repercussões políticas desagradáveis, em particular no mundo islâmico. O regime iraniano seria vitimizado.
Este é, porém, um obstáculo que se ultrapassaria, se não se desse o caso de haver um segundo obstáculo intransponível. É que, com toda a probabilidade, o bombardeamento não atingirá o seu objetivo estratégico último, que é apagar o documento de Einstein e a fórmula das armas atómicas baratas e fáceis de produzir.
O manuscrito seria destruído, claro, mas é mais do que provável que existam cópias noutros cofres iranianos e nada impediria o regime de fabricar a bomba a partir da fórmula que se encontra no texto. O que eu quero dizer é que o bombardeamento destruiria o manuscrito original, mas não a fórmula já copiada."
"É bem visto."
"Foi por isso que Langley me deu instruções para, em caso de não ser possível você voltar a aproximar-se do manuscrito, activar imediatamente a segunda opção."
O iraniano calou-se, parecia preocupado.
"E o que é a segunda opção?", perguntou Tomás.
Bagheri respirou fundo.
"Roubar o manuscrito."
"Como?"
"Ir ao Ministério da Ciência e roubar o manuscrito. Tão simples quanto isso."
O historiador, passada a surpresa inicial, soltou uma gargalhada.
"Caramba, vocês não fazem a coisa por menos!", exclamou. "Roubar o manuscrito? Mas como é que vão conseguir isso?"
"É simples. Arranjamos maneira de anular o guarda, entramos lá dentro, localizamos o documento e tiramo-lo."
"Já agora, por que não microfilmá-lo? Se estão ali com ele à frente, não era melhor serem mais discretos? Afinal de contas, o fato de o roubarem não resolverá o problema, uma vez que, tal como você disse, os tipos têm certamente cópias guardadas noutros sítios."
"Não, isso não pode ser assim. Os Estados Unidos querem levar o documento ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas, para o fazerem, precisam primeiro de o autenticar. Só o poderão autenticar se tiverem o manuscrito original nas suas mãos. É por isso que temos de o ir lá buscar."
87
Tomás considerou as consequências dessa ação.
"Ouça lá, isso não é perigoso?"
"Tudo na vida é perigoso. Sair à rua é perigoso."
"Não desconverse, já parece eu a falar com a minha mãe. O que me preocupa é saber o que me acontecerá quando os iranianos derem pela falta do documento. Eles não são parvos e sabem relacionar as coisas, não é? Num dia mostram-me o manuscrito e, dias depois... puf!, ele desaparece. Isso é... como hei-de eu dizer? É...
suspeito."
"Sim, você não vai ficar em segurança."
"Então, diga-me lá. Como é que vamos resolver isso?"
"Você terá de sair do país."
"Mas como? Eles dizem que só me deixam sair depois de decifrar as charadas inseridas no documento."
"Teremos de o tirar do Irão logo na noite em que formos roubar o manuscrito."
"E quando será isso?"
"Ainda não sei. Gostaria que fosse o mais depressa possível, mas não consigo dizer ainda quando será, há demasiados detalhes para tratar. Conto sabê-lo já amanhã, no entanto. Logo que tenha a informação, darei um salto ao hotel para lhe passar os pormenores." Ergueu o dedo. "Não saia do hotel, ouviu? Faça tudo o que faria normalmente, continue a trabalhar na decifração da charada e espere que eu o contacte."
"Hmm, está bem", assentiu Tomás. "Portanto, deixe-me recapitular. A sua idéia é assaltar o ministério, roubar o documento e vir buscar-me logo a seguir para me tirar do Irã. É isso?"
Bagheri inspirou e conteve o ar dentro de si.
"Bem, é mais ou menos isso, sim", disse, uma expressão reticente no rosto.
"Mas... uh... há um pequeno pormenor que é... diferente."
"Ah, sim?"
"Sim."
O iraniano calou-se, o que espicaçou a curiosidade do historiador.
"E qual é esse pormenor?"
"Você vem conosco."
"Oh, isso já me disse. Vão-me tirar do Irã."
"Não, não é isso o que eu queria dizer. Você também vem connosco ao ministério."
"Como?"
"Você faz parte da equipe de assalto."
XI
88
A grande arena tinha as bancadas repletas de gente, sobretudo mulheres cobertas com chador negros, mas todos se comportavam como se fosse dia de espectáculo. Alguém empurrou Tomás e obrigou-o a ajoelhar-se no centro, a cabeça pendendo para a frente, expondo a nuca e o pescoço. Pelo canto dos olhos, o historiador conseguiu aperceber-se da presença de homens vestidos com longas túnicas brancas islâmicas; eles aproximaram-se e fecharam um círculo em torno de si, como se o cercassem, cortando-lhe a derradeira esperança de escapar daquele lugar de morte. De entre eles emergiu Ariana, o olhar triste, sem se atrever sequer a aproximar do condenado, soprando-lhe um tímido beijo de despedida. Logo a bela iraniana desapareceu e, no seu lugar, surgiu Rahim, os olhos ressentidos faiscando em fúria, uma enorme espada curvada cintilando no cinto. Rahim tirou a espada do cinto num movimento brusco, segurou-a com as duas mãos, pôs-se em posição e ergueu-a para os céus, suspendendo-a por um instante, um medonho segundo, apenas um breve e longo momento antes da lâmina rasgar o ar com toda a força e decapitar Tomás.