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"Já vi que é um galanteador."

Tomás corou.

"Desculpe, saiu-me."

"Ah, não se incomode. Já Marco Polo dizia que as mulheres mais bonitas do mundo eram as iranianas." Pestanejou, sedutora. "Além disso, não há mulher que não goste de ouvir um bom galanteio, não é?”

O historiador analisou-lhe o tailleur pregado ao corpo.

“Mais você é toda moderna. Sendo do Iran, a terra dos ayatollahs, isso é surpreendente."

"Eu... uh... sou um caso especial." Ariana contemplou a desordem na Midan Tahrir. "Ouça, não tem fome?"

"Se não tenho fome? Puxa, era capaz de comer um boi!"

"Então venha daí, vou levá-Io a provar umas especialidades locais.” O táxi dirigiu-se para o Cairo islâmico, no Leste da cidade. À medida que o carro deambulava pela capital egípcia, as avenidas largas da Baixa foram sendo substituídas por um labirinto de ruelas estreitas, atafulhadas de movimento e formigando de vida; viam-se carroças e burros, transeuntes vestidos de galabiyya, vendedores ambulantes, bicicletas, homens a acenar com papiros, bancas de taamiyya, lojas de latões e cobres e couros e tapetes e tecidos e antiguidades acabadas de fazer, esplanadas com clientes a fumar sheeshas, no ar um aroma forte de comida frita e açafrão e curcuma e pimentão-de-cheiro.

O táxi largou-os à porta de um restaurante da Midan Hussein, uma praceta ajardinada à sombra de um esguio minarete.

"Aquela é a mais importante mesquita da cidade, o lugar mais sagrado do Cairo", indicou a iraniana, apontando para o edifício do outro lado da rua. "É a mesquita de Sayyidna al-Hussein."

Tomás apreciou o santuário.

"Ah, sim? O que tem ela assim de tão importante?"

11

"Dizem que está ali uma das mais sagradas relíquias do Islã, a cabeça de al-Hussein."

"E quem é esse?"

"Al-Hussein?", admirou-se Ariana. "Não sabe quem é al-Hussein? Meu Deus, é... é o neto do profeta Maomé. AI-Hussein é o homem que está na base da grande cisão do mundo islâmico. Sabe, o Islã está dividido entre os sunitas e os seguidores de al-Hussein, os xiitas, e aquela relíquia é muito importante para os xiitas."

"E você? O que é?"

"Eu sou iraniana."

"Mas é xiita ou é sunita?"

"Meu caro, no Irã somos quase todos xiitas."

"Portanto, esta é uma mesquita muito importante para si."

"Sim. Quando estou no Cairo, venho aqui rezar às sextas-feiras. Eu e milhares de outros fiéis, claro."

Tomás analisou a fachada.

"Gostava de a visitar."

"Não pode."

"Não? Por quê?"

"Esta mesquita é tão sagrada que apenas os muçulmanos estão autorizados a entrar lá dentro. Os infiéis ficam à porta."

"Ah, bom", exclamou Tomás, decepcionado. "E quem lhe disse que eu sou infiel?"

Ariana olhou-o de soslaio, incerta quanto ao sentido da sua pergunta.

"Não é?"

Tomás soltou uma gargalhada.

"Sou, sou", confirmou, ainda a rir. "Muito infiel." Fez um gesto na direção da porta do restaurante. "Por isso, é melhor irmos comer, não?” O Abu Hussein ostentava um aspecto mais ocidentalizado do que a maioria dos restaurantes egípcios. Todas as mesas apresentavam toalhas imaculadamente lavadas e, pormenor importante naquela cidade, o ar condicionado funcionava a toda a força, enchendo o restaurante de uma frescura prazenteira.

Sentaram-se junto à janela, a mesquita claramente visível do outro lado, e Ariana fez um sinal ao empregado.

"Ya nadil!", chamou.

O homem, fardado de branco, aproximou-se.

"Nam?"

"Qa imatu taqam, min fadlik?"

"Nam."

O homem afastou-se e Tomás inclinou-se na mesa.

"Fala árabe, é?"

"Claro.“

12

“É parecido com iraniano?"

"O parsi e o árabe são línguas totalmente diferentes, embora utilizem o mesmo alfabeto escrito e partilhem algumas palavras."

Tomás pareceu ficar desconcertado.

"Ah'" exclamou. "E o que lhe disse?"

"Nada de especial. Pedi-lhe para trazer o menu, só isso."

O homem reapareceu instantes depois com duas ementas na mão, que entregou a cada um dos clientes. Tomás olhou para a lista e abanou a cabeça.

"Não percebo nada disto."

Ariana espreitou por cima do seu menu.

''O que quer comer?"

"Escolha você. Estou nas suas mãos."

"Tem certeza?"

"Absoluta."

A iraniana analisou as ofertas e voltou a chamar o empregado, a quem fez o pedido. Apenas hesitou nas bebidas e viu-se forçada a consultar Tomás.

"Para beber, tem alguma preferência?"

"Sei lá. O que houver."

"Quer uma bebida alcoólica ou prefere outra coisa?"

"Pode-se beber álcool aqui?"

"No Egito? Claro que pode. Não sabia?"

"Sabia, pois. Estou-me a referir a este lugar, aqui em pleno Cairo islâmico, ao lado da mais sagrada mesquita da cidade. É permitido álcool nesta zona?"

"Não tem problema."

"Ah, bom. E quais são as opções?"

Ariana interrogou o empregado e traduziu a resposta.

"Têm cerveja e vinho egípcio."

"Vinho egípcio? Puxa, não sabia que eles faziam vinho. Olhe, vou experimentar."

A iraniana completou o pedido e o empregado afastou-se.

Uma voz pungente, emitida numa tonalidade melancólica, rasgou o ar; era o muezzin que, do alto do grande minarete, lançava o adhan, chamando os fiéis à oração. O entoar melódico e ondulado de "Allah u akbar" prolongou-se sobre a cidade e Ariana observou pela janela a multidão que convergia para a mesquita.

"Quer ir rezar?", perguntou-lhe ele.

"Não, agora não." Tomás pegou num picle de legumes que servia de aperitivo sobre a mesa.

"Espero que a comida não me faça mal", disse ele, mirando o picle com ar desconfiado.

"Como assim?"

13

"Quando cá cheguei, anteontem, fui comer ao restaurante do hotel e apanhei logo uma diarréia."

' Ah, sim, isso às vezes acontece aos vossos frágeis intestinos europeus. É uma questão de você ter cuidado com o que come."

"Ter cuidado, como?"

"Olhe, evite as saladas e a fruta por descascar, por exemplo." Indicou o picle espetado no palito que Tomás tinha entre os dedos. "Os picles não lhe fazem mal nenhum, pode comer à vontade. Mas beba só água mineral, há garrafas à venda por toda a parte. E não vá a restaurantes baratuchos, daqueles que têm baratas a passear pela mesa. Se for a um desses, arrisca-se."

Tomás trincou o picle.

"Mas eu apanhei a diarréia a comer no restaurante do hotel, o que pensa você?"

"Mesmo os restaurantes mais caros podem ter problemas, nunca se sabe."

O empregado apareceu com uma enorme travessa cheia de pratos coloridos; depositou-os sobre a mesa e retirou-se, dizendo que ia buscar as bebidas. Tomás contemplou a variedade de opções e esfregou o queixo.

"O que é isto?"

Ariana apontou para um prato com comida vermelha e amarela.

"Isto é koshari, um prato típico do Egito. É feito de massa, arroz, lentilhas e molho de tomate, tudo coberto com cebola frita. Se quiser, pode pôr picante."

"E os outros?"

A iraniana indicou cada prato à vez.

“Estes pastéis são taamiyya." Procurou a palavra. "Feitos com favas." Pegou num pão achatado. "Este é o baladi. Pode barrá-lo com hummus em azeite, babaghanoush e fuul."

"O que é isso?"

“Hummus é... é molho de grão-de-bico. O fuul é um puré de favas com ervas e azeite e o outro é um molho de beringelas e tahini. Prove, é bom."

Tomás experimentou e, após um instante a ponderar o gosto, fez sinal de aprovação.

“É bom, é."

“Eu disse-lhe."

O empregado reapareceu com as bebidas. Depositou um copo de karkade frio diante de Ariana e encheu o copo de Tomás com o néctar vermelho-escuro de uma garrafa de tinto árabe. O cliente saboreou um trago e assentiu com a cabeça.