"E o que revelou o exame?", quis saber Tomás, impaciente por chegar à conclusão da história.
"Bem, eles lá foram examinar a amostra extraída da mancha do meu pulmão e dos gânglios linfátlcos. Dias mais tarde, o doutor Gouveia voltou a chamar-nos para uma nova reunião. Depois de uma grande conversa, lá disse que eu tinha... uh..."
Olhou para a mulher. "Ó Graça, tu é que decoras essas coisas. Como é que ele disse?"
"Nunca mais me esqueci", observou Graça Noronha. "Chamou-lhe uma proliferação descontrolada de células do revestimento epitelial da mucosa dos brônquios e alvéolos dos pulmões."
Tomás manteve os olhos cravados na mãe, depois voltou-os para o pai e de novo para a mãe.
"O que diabo quer isso dizer?"
Manuel Noronha suspirou, o sibilo ouvindo-se nitidamente a emergir-lhe do peito.
"Tenho um cancro, Tomás."
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O filho ouviu-o e tentou processar a informação na sua mente, mas sentiu-se anestesiado, sem reação.
"Um cancro? Como assim, um cancro?"
"Tenho um cancro do pulmão." Voltou a respirar fundo. "Primeiro, não acreditei.
Achei que alguém tinha trocado os exames, pondo o meu nome no exame de outra pessoa. Saí do consultório e fui procurar outro médico, o doutor Assis, que me fez novos testes e depois veio com uma grande conversa de que eu tinha um problema chato e precisava de ser tratado, mas não disse o que era." A mulher inclinou-se na cadeira.
"O doutor Assis telefonou-me depois e pediu para falar comigo", disse Graça.
"Quando lá cheguei ele revelou-me o que o doutor Gouveia já me tinha dito. Disse que o teu pai tinha o... enfim, esta doença, mas não sabia se lhe havia de dizer."
O matemático fez um gesto de resignação.
"De modo que lá me convenci e voltei para o doutor Gouveia. Ele explicou-me que o meu problema se chama... uh, tem um nome esquisito, carcinoma-qualquer-coisa.
Chamam-lhe cancro do pulmão sem pequenas células."
"A culpa é do tabaco", resmungou a mulher. "O doutor Gouveia disse que quase noventa por cento dos cancros do pulmão são causados pelos cigarros. Ora, o teu pai fumava que nem uma chaminé!" Ergueu o dedo, à laia de sermão. "Eu bem lhe disse várias vezes, ó Manel, tu vê lá se..."
"Mãe, espere um bocado", interrompeu Tomás, abalado com a notícia.
Olhou para o pai. "Isso tem tratamento, não tem?”
Quase em resposta, Manuel Noronha tossiu.
"O doutor Gouveia disse que há várias coisas que se fazem para combater esse problema. Há a cirurgia, para remover o carcinoma, e há ainda a quimioterapia e a radioterapia."
"E qual é que vai fazer?"
Fez-se um curto silêncio.
"No meu caso", disse o pai enfim, "há duas complicações que, segundo o doutor Gouveia, são muito comuns neste tipo de cancro."
"Que complicações?"
“O meu cancro foi detectado um pouco tarde. Parece que, no cancro do pulmão, isso acontece em setenta e cinco por cento dos casos. Diagnóstico tardio." Tossiu novamente. "A segunda complicação deriva da primeira. Como a doença demorou a ser identificada e está agora bastante avançada, ela espalhou-se por outras partes do corpo. São metástases. Apareceram-me metástases nos ossos e no cérebro, e o doutor Gouveia diz que é natural que venham a aparecer também no fígado."
Tomás sentiu-se paralisado, os olhos cravados no pai.
"Meu Deus", exclamou. "E qual o tratamento?"
"A cirurgia está fora de questão. Os tumores já alastraram, pelo que o meu caso é inoperável. A quimioterapia também não é opção, uma vez que ela só é eficaz no caso do cancro de células pequenas. Eu tenho o das células que não são pequenas, o qual, ao que parece, é até o tipo de cancro de pulmão mais frequente."
"Se não pode operar nem fazer quimioterapia, o que vai fazer?"
"Radioterapia."
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"E isso vai curá-Io?"
"O doutor Gouveia diz que tenho boas hipóteses, que nesta idade a evolução da doença não é muito rápida e que eu tenho de lidar com isto como se fosse uma doença crônica."
"Ah."
"Mas eu estive a ler muita coisa e não sei se ele foi totalmente sincero comigo."
A mulher agitou-se no seu lugar, incomodada com esta observação.
"Que disparate!", protestou. "Claro que foi sincero!” O matemático olhou para a mulher.
"Ó Graça, não vamos discutir outra vez, pois não?"
Graça olhou para o filho, como se buscasse um aliado.
"Já viste isto? Agora anda com a mania que vai morrer!"
"Não é isso", argumentou o marido. "Eu estive a ler umas coisas e percebi que o objetivo da radioterapia não é a cura, mas o mero retardar da evolução da doença."
"Retardar?", perguntou o filho. "Como assim, retardar?"
"Retardar. Tornar a evolução mais lenta."
"Quanto tempo?"
"Sei lá! No meu caso pode ser um mês, pode ser um ano, não faço ideia." Vidrou o olhar. "Espero que sejam vinte", disse. "Mas pode ser só um mês, não sei."
Tomás sentiu o mundo fugir-lhe por baixo dos pés.
"Um mês?"
"Ai Jesus, que mania!", protestou Graça. "Lá está o teu pai a dramatizar tudo..."
O velho professor de matemática teve um ataque de tosse. Recompôs-se com dificuldade, respirou fundo e fixou os úmidos olhos castanhos no verde vítreo do filho.
"Tomás, eu estou a morrer.”
IIl
A segurança à entrada do perímetro da embaixada dos Estados Unidos, um edifício encaixado num recanto verde de Sete Rios, parecia assumir proporções ridículas. Tomás Noronha passou por dois cordões de guardas e foi revistado duas vezes, tendo atravessado um complicadíssimo sistema de detecção de metais e metido o olho numa pequena máquina de tecnologia biométrica concebida para identificar suspeitos pelo reconhecimento da íris; até um espelho os seguranças colocaram por baixo do seu Volkswagen azul, na tentativa de localizarem qualquer eventual explosivo plantado no automóvel. Desde o 11 de Setembro que as medidas de proteção à entrada da embaixada tinham sofrido uma escalada, mas nada o preparara para isto; havia muito tempo que não visitava o local e jamais imaginara que o acesso ao perímetro diplomático se tivesse transformado em tal prova de múltiplos obstáculos.
O sorriso luminoso de Greg Sullivan acolheu-o à porta da embaixada. O adido cultural era um homem de trinta anos, alto, loiro e de olhos azuis, muito arranjadinho 29
e aprumado, de gestos tranquilos e com um certo ar de mórmon. O americano conduziu-o pelos corredores da embaixada e introduziu-o numa sala luminosa, a larga janela aberta para um jardim solarengo. Um rapaz de camisa branca e gravata vermelha encontrava-se sentado na longa mesa da sala, a atenção mergulhada num lap-top aberto sobre o mogno, e ergueu-se quando Sullivan entrou com o seu convidado.
"Don", anunciou. "This is professor Tomás Noronha."
"Howdy!"
Cumprimentaram-se os dois.
"Este é Don Snyder", disse, sempre em inglês, apresentando o rapaz, cuja face muito pálida contrastava com o seu cabelo preto e liso.
Sentaram-se os três, com o adido cultural ainda a conduzir as operações como se fosse um rotinado mestre-de-cerimônias. Sullivan falava alto, mas tinha o olhar preso em Tomás, tornando evidente que as suas palavras se destinavam exclusivamente ao português.
"Esta conversa não está a ocorrer. Tudo o que aqui for dito é informação reservada e permanecerá entre nós." Inclinou a cabeça na direção do convidado.