— Rand mataria alguém que fizesse uma coisa dessas — concordou Elayne. Parecia estar se forçando a ficar insensível. — Tenho certeza.
— Talvez elas mereçam — a firmou Nynaeve —, e talvez ele matasse. Mas os homens muitas vezes confundem a vingança e a matança com justiça. Não costumam ter estômago para a justiça. — Ela se sentara muitas vezes em julgamentos, com o Círculo das Mulheres. Às vezes, os homens as procuravam, pensando que as mulheres talvez lhes dessem mais ouvidos do que os homens do Conselho da Aldeia. Mas eles sempre achavam que podiam influenciar a decisão com eloquência ou pedidos de misericórdia. O Círculo das Mulheres era misericordioso quando mereciam, mas sempre fazia justiça, e era a Sabedoria quem anunciava o veredito. Ela pegou o bracelete que Egwene jogara no chão e o fechou. — Eu libertaria todas as mulheres aqui, se pudesse, e destruiria cada um desses. Mas, já que não posso… — Ela o colocou no mesmo pino em que estava o outro e se dirigiu às sul’dam. Não são mais Senhoras do Colar , disse a si mesma. — Talvez, se permanecerem bem quietas, vocês consigam ficar sozinhas por tempo suficiente para tirar as coleiras. Há de ser o que a Roda tecer, e pode ser que vocês tenham feito bem o suficiente para equilibrar o mal que causaram. O suficiente para que lhes seja permitido tirá-las. Caso contrário, mais cedo ou mais tarde serão encontradas. E acho que quem as encontrar fará muitas perguntas, antes de tirar as coleiras. Talvez vocês aprendam em primeira mão como é a vida que deram a outras mulheres. — Ela hesitou e acrescentou, dirigindo-se às outras: — Isso se chama justiça.
Renna estava com uma expressão de horror, o olhar fixo. Os ombros de Setah sacudiam enquanto ela chorava, apoiada nas mãos. Nynaeve endureceu o coração. Isso é justiça, disse a si mesma. É. Então empurrou as outras para fora do quarto.
Ninguém prestou mais atenção enquanto elas saíram do que quando entraram. Nynaeve supôs que aquilo era graças ao vestido de sul’dam, mas mal conseguia esperar para vestir outra coisa. Qualquer coisa. O trapo mais sujo seria mais limpo do que aquela roupa.
As garotas permaneceram em silêncio, andando logo atrás dela, até alcançarem a rua de pedras. Nynaeve não sabia se faziam aquilo em resposta aos seus atos ou por medo de que alguém as parasse. Sua expressão era de extremo mau humor. Será que todas se sentiriam melhor se ela tivesse deixado chegarem ao ponto de cortar as gargantas das outras mulheres?
— Cavalos — disse Egwene. — Precisaremos de cavalos. Sei qual é o estábulo para onde levaram Bela, mas acho que não conseguiremos chegar até lá.
— Precisamos deixar Bela aqui — informou Nynaeve. — Vamos embora de navio.
— Onde estão todos? — perguntou Min.
De repente, Nynaeve se deu conta de que a rua estava vazia.
A multidão se fora sem deixar vestígios. Todas as lojas e janelas estavam bem fechadas. Subindo a ladeira, vindo do porto, havia uma formação de soldados Seanchan. Cem ou mais, em fileiras organizadas, com um oficial à frente, vestindo armaduras pintadas. Ainda estavam a meia rua de distância, mas marchavam a um passo soturno e implacável. Nynaeve sentiu que parecia que cada olhar estava fixo nela. Isso é ridículo. Não consigo ver os olhos dentro daqueles elmos, e, se alguém tivesse dado um alarme, estariam atrás de nós. Ela parou mesmo assim.
— Tem mais atrás de nós — murmurou Min. Nynaeve já conseguia ouvir as botas. — Não sei qual deles chega aqui primeiro.
A Sabedoria respirou fundo.
— Eles não têm nada a ver conosco. — Ela olhou para além dos soldados que se aproximavam, para o porto, cheio daqueles navios altos, que pareciam caixotes. Não conseguia ver o Espuma. Rezava para que ele ainda estivesse lá, e a postos. — Vamos passar direto. — Luz, espero que a gente consiga.
— E se eles quiserem que você se junte a eles, Nynaeve? — perguntou Elayne. — Você está usando esse vestido. Se começarem a fazer perguntas…
— Não vou voltar — interrompeu Egwene, sombria. — Pre iro morrer. Me deixem mostrar o que me ensinaram. — Aos olhos de Nynaeve, uma nuvem dourada envolveu a menina, de repente.
— Não! — exclamou, mas era tarde demais.
Com o rugido de um trovão, o chão sob as primeiras fileiras dos Seanchan entrou em erupção. Terra, pedras e homens de armadura voaram como o jorro de um chafariz. Ainda brilhando, a jovem se virou para o outro lado da rua, e o rugido se repetiu. Choveu terra sobre elas. Soldados Seanchan, aos gritos, se dispersaram ainda em formação, abrigando-se em vielas e atrás de obstáculos. Em instantes, não havia mais nenhum à vista, exceto os que jaziam em torno das duas crateras que des figuravam a rua. Alguns se mexiam, fracos, e gemidos ecoavam pela rua.
Nynaeve ergueu as mãos em frustração, tentando olhar para os dois lados ao mesmo tempo.
— Sua idiota! Estamos tentando não chamar atenção! — Não havia esperança de isso acontecer, àquela altura. Torcia apenas para que conseguissem contornar os soldados e seguir até o porto pelas vielas. As damane também já devem estar sabendo. Não poderiam ter deixado de notar.
— Não vou voltar para o colar! — gritou Egwene, feroz. — Não vou!
— Cuidado! — gritou Min.
Com um guincho estridente, uma bola de fogo do tamanho de um cavalo descreveu um arco acima dos telhados e começou a cair. Bem em cima delas.
— Corram! — berrou Nynaeve, e se atirou, mergulhando rumo à viela mais próxima, entre duas lojas fechadas.
Com um gemido, ela caiu de barriga, aterrissando de qualquer jeito. Perdeu o fôlego quando a bola de fogo chegou. Um vento quente soprou pela passagem estreita. Engolindo em seco, ela rolou, parando de barriga para cima, e olhou para a rua.
As pedras do calçamento estavam lascadas, rachadas e enegrecidas em um raio de dez passos de onde estiveram. Elayne estava agachada em outra viela, do outro lado da rua. Não havia sinal de Min ou Egwene. Nynaeve levou a mão à boca, horrorizada.
Elayne pareceu entender o que ela estava pensando. A Filha-herdeira sacudiu a cabeça com força e apontou para a rua, mais à frente. Elas tinham ido naquela direção.
Nynaeve soltou um suspiro de alívio que no mesmo instante se transformou em um rosnado. Garota idiota! Podíamos ter passado direto por eles! Mas não havia tempo para recriminações. Ela correu para a esquina e olhou por trás do prédio com cautela.
Uma bola de fogo do tamanho de uma cabeça lampejou pela rua em sua direção. Nynaeve pulou para trás logo antes de o projétil explodir contra a esquina, passando onde sua cabeça estivera e cobrindo-a de lascas de pedra.
A raiva a deixou em contato com o Poder Único antes mesmo que ela se desse conta. Raios caíram do céu, atingindo algum ponto mais acima na ladeira, perto de onde viera a bola de fogo. Outro relâmpago cruzou o céu, e ela correu para longe da rua. Atrás de si, um raio atingiu a entrada da viela.
Se Domon não estiver esperando com aquele navio, eu… Luz, que a gente consiga chegar lá a salvo.
Bayle Domon se levantou de um salto quando os raios cruzaram o céu cinza-chumbo, caindo em algum lugar da cidade. Então os viu outra vez. Nem tem nuvem no céu pra isso!
Algo produziu um estrondo na parte alta da cidade, e uma bola de fogo atingiu um telhado ao lado das docas, arremessando lajotas estilhaçadas para todos os lados. Um pouco antes, o porto estivera vazio, exceto por uns poucos Seanchan. Mas, no momento, eles corriam desesperados, sacando espadas e gritando. Um homem saiu de um dos armazéns com um grolm ao lado, correndo para acompanhar os longos saltos da fera enquanto os dois subiam uma das ladeiras e sumiam.