AS CRÔNICAS DE GELO
E FOGO
LIVRO UM
A GUERRA DOS TRONOS
Tradução
Jorge Candeias
2010
LeYa
Prólogo
- Deveríamos regressar - insistiu Gared quando os bosques
começaram a escurecer ao redor do grupo. - Os selvagens estão
mortos.
- Os mortos o assustam? - perguntou Sor Waymar Royce com não
mais do que uma sugestão de sorriso no rosto.
Gared não mordeu a isca. Era um homem velho, com mais de
cinquenta anos, e vira os nobres chegar e partir.
- Um morto é um morto - respondeu. - Nada temos a tratar com os
mortos.
- Mas estão mortos? - perguntou Royce com suavidade. - Que prova
temos disso?
- Will os viu - disse Gared. - Se ele diz que estão mortos, é prova
suficiente para mim.
Will já sabia que o arrastariam para a disputa mais cedo ou mais
tarde. Desejou que tivesse sido mais tarde.
- Minha mãe disse-me que os mortos não cantam - contou Will.
- Minha ama de leite disse a mesma coisa, Will - respondeu Royce. -
Nunca acredite em nada do que ouvir junto à mama de uma mulher.
Há coisas a aprender mesmo com os mortos - sua voz gerou ecos,
alta demais na penumbra da floresta.
- Temos perante nós uma longa cavalgada - salientou Gared. - Oito
dias, talvez nove. E a noite está para cair.
Sor Waymar Royce olhou o céu de relance, com desinteresse.
- Isso acontece todos os dias por esta hora. Você perde a virilidade
com o escuro, Gared?
Will via o aperto em torno da boca de Gared, a ira só a custo
reprimida nos olhos que espreitavam sob o espesso capuz negro de
seu manto. Ele passara quarenta anos na Patrulha da Noite, em
homem e em rapaz, e não estava acostumado a ser desvalorizado.
Mas era mais do que isso. Will conseguia detectar no homem mais
velho algo mais sob o orgulho ferido. Era possível sentir-lhe o gosto:
uma tensão nervosa que se aproximava perigosamente do medo.
Will partilhava o desconforto do outro homem. Estava havia quatro
anos na Muralha. Da primeira vez que fora enviado para lá, todas as
velhas histórias lhe tinham acorrido ao cérebro, e suas entranhas se
tinham feito em água. Era agora um veterano de cem patrulhas, e a
escura e infinita terra selvagem a que os sulistas chamavam floresta
assombrada já não tinha terrores para si.
Até aquela noite. Algo era diferente então. Havia naquela escuridão
algo de cortante que lhe fazia eriçar os pelos da nuca. Cavalgavam
havia nove dias, para norte e noroeste, e depois de novo para norte,
cada vez para mais longe da Muralha, seguindo sem desvios a trilha
de um bando de salteadores selvagens. Cada dia fora pior que o
anterior. Aquele tinha sido o pior de todos. Um vento frio soprava do
norte e fazia as árvores sussurrarem como coisas vivas. Durante todo
o dia
Will tivera uma sensação que era como se alguma coisa o estivesse
observando, algo frio e implacável que não gostava dele. Gared
também sentira. Will nada desejava com tanta força como cavalgar a
toda pressa de volta à segurança da Muralha, mas este não era um
sentimento que se pudesse partilhar com um comandante.
Especialmente com um comandante como aquele.
Sor Waymar Royce era o filho mais novo de uma Casa antiga com
demasiados herdeiros. Era um jovem bem-apessoado de dezoito anos,
de olhos cinzentos, elegante e esbelto como uma faca. Montando em
seu enorme corcel de batalha negro, o cavaleiro elevava-se bem
acima de Will e Gared, montados nos seus garranos de menores
dimensões. Trajava botas negras de couro, calças negras de lã, luvas
negras de pele de toupeira e uma cintilante cota de malha negra e
flexível por cima de várias camadas de lã negra e couro fervido. Sor
Waymar era um Irmão Juramentado da Patrulha da Noite havia
menos de meio ano, mas ninguém poderia dizer que não se
preparara para a sua vocação. Pelo menos no que dizia respeito ao
guarda-roupa.
O manto constituía a consumação da sua glória; zibelina, espessa e
negra, suave como pele. "Aposto que foi ele próprio quem as matou
todas, ah, pois aposto", dissera Gared na caserna, entre os vapores do
vinho, “torceu-lhes as cabecinhas e arrancou-as, o nosso poderoso
guerreiro". A gargalhada fora partilhada por todos.
"É difícil aceitar ordens de um homem de quem nos rimos de copo
na mão", refletiu Will, sentado, tremendo, sobre o dorso do garrano,
Gared devia sentir o mesmo.
- Mormont nos disse para os encontrarmos, e encontramos - disse
Gared. - Estão mortos. Não voltarão a nos causar problemas, Temos
uma dura cavalgada à nossa frente. Não gosto deste tempo. Se nevar,
poderemos levar uma quinzena para regressar, e a neve é o melhor
que podemos esperar. Alguma vez viu uma tempestade de gelo,
senhor?
O nobre pareceu não ouvi-lo. Estudava o crepúsculo, o que
aprofundava aquele seu modo meio aborrecido e meio distraído. Will
já cavalgava com o cavaleiro havia tempo suficiente para
compreender que era melhor não o interromper quando tinha aquela
expressão.
- Diga-me de novo o que viu, Will. Todos os detalhes. Não deixe nada
de fora,
Will fora um caçador antes de se juntar à Patrulha da Noite. Bem, na
verdade fora um caçador furtivo. Os cavaleiros livres de Mallister
tinham-no apanhado com a boca na botija nos bosques do próprio
Mallister, esfolando um dos seus gamos, e apenas pudera escolher
entre passar a vestir-se de negro e perder uma mão. Ninguém era
capaz de se mover pela floresta tão silenciosamente como Will, e os
irmãos negros não tinham demorado muito tempo para descobrir
seu talento.
- O acampamento fica duas milhas mais à frente, para lá daquela
cumeada, ao lado de um córrego - disse Will. - Cheguei o mais perto
que me atrevi. Eles são oito, com homens e mulheres. Não vi
crianças. Ergueram um abrigo contra a rocha. A neve já o cobriu
bem, mas mesmo assim consegui descortiná-lo. Não vi nenhum fogo
ardendo, mas a cova da fogueira ainda estava clara como o dia.
Ninguém se movia. Observei durante muito tempo. Nunca um
homem vivo ficou tão quieto.
- Viu algum sangue?
- Bem, não - admitiu Will.
- Viu armas?
- Algumas espadas, uns quantos arcos. Um homem tinha um
machado. Com ar de ser pesado, duas lâminas, um cruel bocado de
ferro. Estava no chão à seu lado, junto à sua mão.
- Prestou atenção à posição dos corpos?
Will encolheu os ombros.
- Um par deles está sentado junto ao rochedo. A maioria está no
chão. Como caídos.
- Ou dormindo - sugeriu Royce.
- Caídos - insistiu Will. - Há uma mulher numa árvore de pau-ferro,
meio escondida entre os ramos. Uma olhos-longos - ele deu um
tênue sorriso. - Assegurei-me de que não me conseguiria ver.
Quando me aproximei, vi que ela também não se movia - e sacudiu-
se por um estremecimento involuntário.
- Está enregelado? - perguntou Royce.
- Um pouco - murmurou Will. - É o vento, senhor.
O jovem cavaleiro virou-se para seu grisalho homem de armas.