— Como foi que Koot Hoomi permitiu que saísse em Cruzada? — perguntou Will. — Será que não previu o que aconteceria a Murugan assim que a senhora virasse as costas?
— Ele anteviu tudo — disse a rani. — As tentações, a resistência e o assalto conjunto de todas as Forças do Mal. Sabia também que a Salvação viria no último instante!… Por longo tempo — explicou ela —, Murugan não me disse o que estava acontecendo. Após três meses, os assaltos da Força do Mal foram demasiados e então ele começou a fazer alusões veladas. Mas eu estava demasiadamente absorvida no trabalho do meu Mestre e não dei a devida atenção. Finalmente ele me escreveu uma carta onde me explicava tudo em detalhes. Cancelei minhas quatro últimas palestras no Brasil e fui para casa nas asas do mais rápido dos jatos. Uma semana depois, estávamos de volta à Suíça. Apenas o meu filhinho e eu, sós com o Mestre.
Ela cerrou os olhos e uma expressão de êxtase maligno apareceu em seu rosto. Will desviou os olhos enojado. Essa salvadora do mundo que se auto-canonizava, essa mãe arrebatada e dominadora se teria visto, por um instante, com os olhos dos outros? Teria consciência do que já havia feito e continuava fazendo àquele filhinho tolo?
Para a primeira pergunta a resposta era certamente negativa. A respeito da segunda, podia-se conjeturar. Talvez ela realmente não soubesse o que fizera ao jovem. Por outro lado, talvez soubesse. Talvez preferisse o que estava acontecendo com o coronel Dipa ao que poderia vir a acontecer, caso a educação do filho fosse empreendida por uma outra mulher. A mulher poderia suplantá-la, mas não havia esse risco com o coronel.
— Murugan me disse que pretende modificar essas chamadas «reformas», ora em vigor.
— A única coisa que posso fazer é rezar para que lhe sejam dadas a Força e a Sabedoria de que necessitará para realizá-la — disse a rani num tom que fez com que Will se lembrasse do seu avô arquidiácono.
— E o que pensa de seus outros projetos? Sobre o petróleo, as indústrias e a criação de um exército?
— Economia e política não são o meu forte — respondeu com uma risadinha cuja intenção era lembrá-lo de que estava falando com alguém que havia recebido a «Quarta Iniciação». — Pergunte a Bahu o que ele acha.
— Não tenho o direito de emitir opinião — disse o embaixador. — Sou um estranho que representa uma potência estrangeira.
— Não tão estrangeira — disse a rani.
— Não, perante seus olhos, minha senhora. E não, como a senhora o sabe muito bem, perante os meus. Mas, aos olhos do governo palanês, sou considerado como um estrangeiro.
— Mas isso não o impede de ter opiniões próprias — disse Will. — Apenas evita que tenha de seguir as opiniões ortodoxas locais. Quero lembrá-lo — acrescentou — de que não estou aqui como um profissional. O senhor não está sendo entrevistado, senhor embaixador. O que me disser não constituirá assunto de reportagem.
— Minha opinião estritamente pessoal (não como um representante oficial) e confidencial é de que o nosso jovem amigo está inteiramente certo.
— Deduzo daí que o senhor acha que a política do governo palanês é inteiramente errada.
— Exatamente — disse Mr. Bahu. E a máscara ossuda e vigorosa de Savonarola se retorceu num sorriso voltairiano. — Está inteiramente errada por ser inteiramente certa.
— Certa? — protestou a rani. — Certa?
— Inteiramente certa porque visava a dar o máximo de liberdade e de felicidade concebíveis a cada homem, mulher e criança desta encantadora ilha.
— Porém com uma falsa felicidade e uma liberdade apenas para o Eu Inferior! — gritou a rani.
— Eu me curvo — disse o embaixador, curvando-se devidamente — diante do alto discernimento de Vossa Majestade. No entanto, superior, inferior, verdadeira ou falsa, a felicidade é sempre a felicidade e a liberdade é bastante agradável. Não pode haver dúvidas de que a política iniciada pelos reformadores e desenvolvida através dos anos foi admiravelmente bem adaptada na obtenção desses dois objetivos.
— O senhor pensa que esses objetivos sejam indesejáveis? — indagou Will.
— Pelo contrário, todos os desejam. Infelizmente, porém, devido a presente situação do mundo em geral, e de Pala em particular, eles foram completamente ultrapassados.
— Serão menos importantes agora do que o foram quando os reformadores iniciaram o trabalho em prol da felicidade e da liberdade?
O embaixador assentiu.
— Naquela época Pala não constava dos mapas. A idéia de transformá-la num oásis de liberdade e felicidade tinha razão de ser. Enquanto permanecer sem contato com o resto do mundo, uma sociedade ideal pode subsistir. Eu diria que Pala era completamente viável até cerca de 1905. Mas em menos de uma geração o mundo se transformou completamente. Os cinemas, os automóveis, os aeroplanos e o rádio apareceram. E, com eles, a produção em massa, a matança em massa, a comunicação em massa e, dominando tudo, a massa: gente, cada vez mais gente, acomodada em cortiços e subúrbios cada vez maiores. Por volta de 1930 qualquer observador esclarecido teria notado que, para três quartos da raça humana, a liberdade e a felicidade eram assuntos quase fora de discussão. Hoje, após trinta anos, estão completamente fora de questão. Enquanto isso, essa pequena ilha de liberdade e felicidade vem sendo envolvida pelo mundo. O cerco vem se fechando vagarosa e inexoravelmente em torno dela. Aquilo que antes era um ideal viável, agora não o é mais.
— Na sua opinião, Pala terá de se transformar?
Mr. Bahu concordou.
— Radicalmente — respondeu.
— Dos pés à cabeça — disse a rani, com o prazer sádico de um profeta.
— E por duas irrefutáveis razões — continuou Mr. Bahu. — Primeiro, porque é simplesmente impossível que Pala continue sendo diferente do resto do mundo. Segundo, porque não é justo que seja diferente.
— Não é justo que as pessoas sejam livres e felizes?
Uma vez mais a rani disse algo inspirado a respeito do conceito errôneo de felicidade e de liberdade.
Mr. Bahu, após tomar um conhecimento respeitoso da interrupção, dirigiu-se novamente a Wilclass="underline"
— Não é justo que ostentem felicidade frente a tanta miséria. É hubris total, é uma afronta deliberada ao resto da humanidade. Chega mesmo a ser uma espécie de desafio a Deus.
— Deus, Deus… — murmurou a rani fechando os olhos voluptuosamente. Reabrindo-os, continuou: — Esse povo de Pala não acredita em Deus. Crê apenas em Hipnotismo, Panteísmo e Amor Livre.
Essas palavras, ditas de modo enfático, traduziam uma indignada repugnância.
— E a senhora se propõe a torná-los infelizes, na esperança de que isto lhes devolva a fé em Deus? Bem, este é um modo de conseguir conversões! Talvez funcione e o fim venha a justificar os meios — disse Will com um encolher de ombros. — Vejo, porém que todo esse plano, não importa que seja bom ou mau, será bem-sucedido. Também não importa saber como os palaneses o encaram. Não é necessário ser um profeta para predizer o sucesso de Murugan. Ele está cavalgando a onda do futuro, e essa onda é, sem dúvida, uma onda de petróleo bruto. Por falar em petróleo — acrescentou —, tenho a impressão de que a senhora conhece meu velho amigo Joe Aldehyde…
— Você o conhece?
— Muito bem.
— Então era por isso que minha Pequena Voz estava tão insistente! — Fechando novamente os olhos, ela sorriu para si mesma e meneou a cabeça devagar.
— Agora compreendo! — E, mudando de tom: — Como vai aquele homem a quem tanto estimo? — perguntou.