— As ordens do médico são ordens para ser cumpridas — disse a rani, exagerando o papel do personagem real que se permite uma benevolência brincalhona. — Ouvir é obedecer! Mas, onde está o meu chofer?
— O seu chofer está aqui — respondeu uma voz familiar.
Belo como uma aparição de Ganimedes, Murugan estava parado à porta. Um olhar de surpresa surgiu no rosto da pequena enfermeira.
— Alô, Murugan, quero dizer, Majestade. — Ela fez outra reverência que tanto poderia ser julgada como um sinal de respeito quanto de irônica zombaria.
— Oh! Alô, Radha — disse o jovem num tom intencionalmente cerimonioso. Passando por ela, foi até onde sua mãe estava sentada. — O carro, se aquilo pode ser chamado de carro, está à porta. — Com um riso sarcástico, explicou a Wilclass="underline" — É um pequeno Austin da série de 1954. É o que de melhor este país altamente civilizado pode fornecer à sua família real. Enquanto isso, Rendang dá ao seu embaixador um Bentley — comentou com amargura.
— O qual virá me buscar neste endereço em cerca de dez minutos — disse Mr. Bahu, olhando para seu relógio. — Vossa Majestade permite que eu me retire? — A rani estendeu a mão. Com a piedade de um bom católico que beija o anel do cardeal, curvou-se sobre ela. Porém, endireitando-se, virou-se para Wilclass="underline" — Presumo, talvez injustamente, que Mr. Farnaby possa acolher— me por um pouco mais. Poderia ficar? — Will assegurou-lhe que seria um prazer. — Espero que não haja objeção no terreno da medicina — disse Mr. Bahu, dirigindo-se à pequena enfermeira.
— Não no terreno médico — disse a jovem num tom que dava a impressão da existência das mais irrefutáveis objeções não— médicas.
Auxiliada por Murugan, a rani se levantou da cadeira.
— Au revoir, mon cher Farnaby — disse, enquanto lhe estendia a mão coberta de jóias.
Seu sorriso estava carregado de uma doçura que Will considerou positivamente ameaçadora.
— Adeus, madame.
Ela virou-se, deu um tapinha na face da enfermeira e saiu do quarto. Tal uma lancha que seguisse na esteira de um navio de linha, armado em galera, Murugan acompanhou-a.
CAPÍTULO VI
— Céus! — explodiu a pequena enfermeira, quando a porta estava bem fechada atrás deles.
— Concordo plenamente com você — disse Will.
O brilho voltairiano luziu por um segundo no rosto evangélico de Mr. Bahu.
— Céus! — repetiu ele. — Ouvi essa exclamação dos lábios de um colegial inglês ao ver a Grande Pirâmide pela primeira vez. A rani nos causa a mesma impressão. Monumental! Ela é o que os alemães chamam eine grosse Seele. — O brilho sardónico desapareceu e o rosto era, sem a menor dúvida, o de Savonarola, e era óbvio que as palavras se destinavam à imprensa.
De repente, a pequena enfermeira começou a rir.
— Que há de tão engraçado?
— Tive uma repentina visão da Grande Pirâmide toda vestida em musselina branca — disse ela ofegante. — O dr. Robert dá-lhe o nome de «uniforme dos místicos».
— Espirituoso, muito espirituoso! — disse Mr. Bahu. — No entanto — acrescentou diplomaticamente —, não sei por que os místicos não podem usar uniformes se assim o desejarem.
A pequena enfermeira deu um suspiro, secou as lágrimas provocadas pelo riso e começou a preparar a injeção que deveria aplicar no paciente.
— Sei exatamente o que está pensando — disse ela a Will. — Pensa que sou jovem demais para fazer bem o meu serviço.
— Realmente, você é muito jovem.
— Vocês vão para a Universidade aos dezoito anos e lá permanecem por quatro anos. Nós começamos aos dezesseis e continuamos nos educando até os vinte e quatro anos. Estudamos durante metade do tempo e a outra metade é dedicada a trabalhos práticos. Há dois anos estudo Biologia e faço trabalhos de enfermagem. Não sou tão tola quanto pareço. Sou uma boa enfermeira.
— Uma afirmação que posso confirmar de modo inequívoco — disse Mr. Bahu. — Miss Radha não é apenas uma boa enfermeira. É uma enfermeira de primeiríssima ordem!
O que ele realmente queria dizer (pensava Will, enquanto observava a expressão naquele rosto de monge torturado pelas tentações) era que Miss Radha tinha uma cintura, um umbigo e uns seios de primeira ordem. Mas a possuidora do umbigo, da cintura e dos seios havia se ofendido com a admiração do Savonarola ou com a forma pela qual fora externada. Esperançoso, excessivamente esperançoso, o rejeitado embaixador voltava ao ataque.
A lâmpada de álcool foi acesa e, enquanto a agulha era fervida, a pequena enfermeira Appu tomou a temperatura do paciente.
— Noventa e nove ponto dois.
— Isso significa que terei de ser expulso? — perguntou Mr. Bahu.
— Por causa dele não será necessário — respondeu a jovem.
— Então fique, por favor — disse Will.
A pequena enfermeira aplicou-lhe a injeção de antibiótico e, tirando de um dos vidros de sua bolsa uma colher de sopa de líquido esverdeado, misturou-o em meio copo de água.
— Beba.
O sabor era parecido com uma dessas misturas de ervas, usadas pelos entusiastas de alimentos saudáveis para substituírem o chá.
— Que é isso? — perguntou Will.
Ela explicou que era extrato de uma planta das montanhas, da família da valeriana.
— Ajuda as pessoas a deixar de lado as preocupações — continuou a pequena enfermeira — sem que fiquem sonolentas. Nós a damos aos convalescentes. É também muito útil nos casos mentais.
— Como estou sendo classificado? Caso mental ou convalescente?
— Ambos — respondeu sem hesitação.
Ele riu alto.
— E o que acontece quando procuramos elogios.
— Não tive intenção de ser grosseira. Tudo o que quis dizer foi que nunca encontrei uma pessoa de fora que não fosse um caso mental.
— Incluindo o embaixador?
Ela devolveu a pergunta ao inquiridor:
— Qual a sua opinião?
Will passou a questão a Mr. Bahu.
— O senhor é um perito neste campo — acrescentou ainda.
— Resolvam o assunto entre vocês — disse a pequena enfermeira —, pois tenho de ir providenciar o almoço do meu paciente.
Mr. Bahu observou-a enquanto se afastava. Depois, erguendo a sobrancelha esquerda, deixou cair o monóculo e metodicamente passou a limpar a lente com o lenço.
— A sua anormalidade é de um modo e a minha é de outro — disse ele a Will. — Um esquizóide (não é isso que você é?) e, do outro lado do mundo, um paranóide. Ambos vítimas da mesma praga do século XX. Desta vez não se trata da peste negra, mas da vida cinza. Você já se interessou pelo poder? — perguntou, após um momento de silêncio.
— Nunca — respondeu Will, balançando vigorosamente a cabeça. — Ninguém pode ter poder sem se comprometer!
— Para você, o terror de se comprometer é maior do que o prazer de ser obedecido?
— Milhares de vezes maior.
— Nunca se sentiu tentado?
— Nunca — disse Will. Depois de uma pausa, ajuntou num outro tom: — Vamos tratar de negócios.
— Aos negócios — repetiu Mr. Bahu. — Diga-me algo sobre lorde Aldehyde.
— Bem, como disse à rani, ele é notavelmente generoso.
— Não estou interessado em suas virtudes, apenas em sua inteligência. Qual o grau de sua vivacidade?
— Tem bastante inteligência para saber que ninguém faz qualquer coisa sem receber nada em troca.
— Ótimo — disse Mr. Bahu. — Diga-lhe em meu nome que, para um trabalho eficiente, feito por um perito em posições estratégicas, ele deve estar preparado para pagar dez vezes mais do que vai lhe pagar.