— Maithuna é dhyana — concluiu Ranga, pensando que uma palavra nova esclareceria tudo.
— E que é dhyana? — perguntou Will.
— Dhyana é contemplação.
— Contemplação!
Will pensou naquela alcova rosa-morango da rua Charing Cross. Contemplação não era bem a palavra que escolheria. E, no entanto, pensando bem, mesmo lá ele encontrara uma espécie de alívio! Aquelas alienações à luz incerta do Gin Porter eram as loucuras do seu odioso ego diurno. Infelizmente eram também as alienações de todo o resto do seu ser — alienações do amor, da inteligência, da decência… Alienações de toda a consciência, com exceção daquele excruciante frenesi à luz mortuária ou sob o «brilho rosado da mais barata e vulgar ilusão.
Olhou novamente o rosto radiante de Radha. Que felicidade! Naquele rosto jovem estava estampada a convicção nascida de uma serenidade na qual não se via a noção de pecado que Mr. Bahu estava tão determinado a combater. Tamanha tranqüilidade chegava a ser profundamente comovente!
Mas ele se recusava a se deixar comover. O Noli me tangere era um imperativo categórico. Resolveu mudar o ponto de vista pelo qual via as coisas e conseguiu analisá-las sob um aspecto inteiramente ridículo. Que devemos fazer para sermos salvos? Pensou numa pilhéria que lhe ocorrera e, ainda sorrindo, perguntou ironicamente:
— Ensinaram-lhe maithuna na escola?
— Sim, na escola — respondeu Radha com uma naturalidade que tirou todo o rabelaisianismo de suas esperanças.
— Todos o aprendem na escola — ajuntou Ranga.
— Quando começaram a ensinar?
— Quase que simultaneamente com a trigonometria e a biologia adiantada. Entre quinze anos e quinze anos e meio.
— E continuam a praticar o maithuna, mesmo depois que atingem a idade adulta e se tornam independentes? Mesmo depois do casamento?
— Sim. A grande maioria continua a utilizá-lo mesmo depois do casamento.
— Durante todo o tempo?
— Só deixam de usá-lo quando desejam ter um filho.
— Como agem os que, não desejando filhos, apenas querem sair da rotina do maithuna?
— Usam anticoncepcionais — disse Ranga laconicamente.
— Os anticoncepcionais são adquiridos com facilidade?
— São distribuídos pelo governo e isentos de qualquer despesa. Gratuitamente. As despesas, se é que você quer ser preciso, são aquelas representadas pelas contribuições oriundas dos impostos. No princípio de cada mês o carteiro entrega uma provisão para trinta noites.
— E os bebês não aparecem?
— Apenas aqueles que desejamos. Ninguém tem mais de três e a maioria dos casais pára no segundo. As estatísticas demonstram que nossa população está crescendo de menos de um terço de um por cento anualmente. Enquanto isso, em Rendang o aumento é igual ao do Ceilão, isto é, de quase três por cento. Na China é de dois por cento e na índia é de 1,7 por cento — disse Ranga, com ares de importância.
— Estive na China há um mês — disse Will. — É assustador! No ano passado, visitei a índia durante quatro semanas e, antes disso, viajei pela América Central, onde a natalidade excede a de Rendang e a do Ceilão. Algum de vocês já esteve em Rendang-Lobo?
Ranga balançou a cabeça afirmativamente.
— Passei três dias em Rendang. Ao atingirmos a 6a série superior, essas viagens estão incluídas no curso de Sociologia. Têm por objetivo permitir que o aluno veja por si mesmo o mundo exterior.
— Qual a sua impressão?
O rapaz respondeu com outra pergunta:
— Quando esteve em Rendang-Lobo, eles lhe mostraram os cortiços?
— Pelo contrário, fizeram tudo o que era possível para evitar que eu os visse. Contudo, consegui escapar.
Will se lembrava perfeitamente da escapada que dera quando voltava para o hotel, depois do coquetel que o ministro de Relações Exteriores oferecera a todos aqueles que tinham «posição». Lá estavam os dignitários e suas esposas — uniformes e medalhas, Dior e esmeraldas. Todos os estrangeiros importantes — diplomatas em abundância, homens do petróleo (ingleses e americanos), seis membros da missão comercial do Japão, uma far— macologista de Leningrado, dois engenheiros poloneses, um turista alemão (que era primo de Krupp von Bohlen), um armênio enigmático (que representava um consórcio financeiro muito importante em Tânger) e, sorrindo triunfalmente, os quatorze técnicos tcheco-eslovacos que tinham vindo no mês anterior, juntamente com o carregamento de tanques, canhões e metralhadoras Skoda. «E essas são as pessoas», ele dissera para si mesmo, enquanto descia os degraus de mármore do edifício do Ministério das Relações Exteriores em direção à praça da Liberdade, «essas são as pessoas que governam o mundo. Dois bilhões e novecentos milhões de seres humanos estão à mercê de um punhado de políticos, uns poucos milhares de magnatas e generais e agiotas. Vós sois o cianureto do mundo — e o cianureto jamais perderá seu sabor.»
Depois do resplendor do coquetel, depois dos sorrisos, dos deliciosos odores dos canapés e das mulheres borrifadas com Chanel, aquelas ruelas atrás do novíssimo «Palácio da Justiça» lhe pareceram duplamente fétidas e escuras. E aqueles pobres desgraçados que se abrigavam sob as árvores da «avenida da Independência» lhe pareceram ainda mais completamente abandonados por Deus e pelo homem do que aqueles milhares de «sem lar e sem esperanças» que vira dormindo, como se já estivessem mortos, nas ruas de Calcutá.
Lembrou-se daquele menino, um minúsculo esqueleto com a barriga enorme, a quem ele levantara trêmulo e machucado depois de ter caído das costas da irmã, que, embora sendo pouco maior que ele, o carregava. Levantara o menino e, guiado pela irmã, carregara-o no colo até o porão sem janelas, que era seu lar. E, na escuridão desse «lar», ele contara nove cabeças infectadas pela micose!
— Manter as crianças vivas, tratar os doentes, evitar que os detritos invadam o fornecimento da água são coisas intrinsecamente boas, não há a menor dúvida! Mas aonde conduzem todas essas boas coisas? O resultado é o aumento do número das misérias humanas; é a civilização exposta ao perigo. E esta é a espécie de brincadeira cósmica com que Deus parece realmente se deleitar! — Will dirigiu aos jovens um de seus sorrisos ferozes e agressivos.
— Deus nada tem a ver com isto — retrucou Ranga — e a brincadeira não é cósmica; foi inteiramente elaborada pelo homem. Essas coisas não são como a lei da gravidade ou a segunda lei da termodinâmica. Elas não têm de acontecer. Somente ocorrem se as pessoas são bastante estúpidas para permitirem. Aqui em Pala não o permitimos e, por isso, não brincaram conosco. Há quase um século temos bom sistema sanitário e, apesar disso, não temos excesso de população, não temos miséria e não estamos sob uma ditadura. A razão de tudo isso é muito simples: escolhemos um modo de proceder que é sensato e realista.
— Como conseguiram escolher? — perguntou Will.
— As pessoas a quem cabia decidir foram inteligentes no momento oportuno — disse Ranga. — Mas temos de admitir que a sorte nos ajudou muito. De um modo geral, Pala tem tido uma sorte fora do comum. Em primeiro lugar, pelo fato de nunca ter sido uma colônia. Rendang possui uma baía magnífica. Isso lhes trouxe uma invasão árabe, na Idade Média. Como nós não temos uma baía, os árabes nos deixaram em paz. Continuamos budistas, xivaítas ou simples agnósticos de tantrik.
— Você é um agnóstico de tantrik? — perguntou Will.
— Com um «toque» de mahayana — especificou Ranga. — Mas, voltando á história de Rendang… Depois dos árabes, vieram os portugueses. Em Pala, sem a baía, nada de portugueses. Conseqüentemente, não houve minorias católicas nem a tola blasfêmia que diz ser a vontade de Deus que manda as pessoas se reproduzirem até o grau da miséria subumana. Finalmente, não houve resistência organizada ao controle da natalidade. Essa não foi nossa única bênção. Após duzentos e vinte anos de domínio português, Ceilão e Rendang passaram a ser dominados pelos holandeses e, depois, pelos ingleses. Escapamos de ambas as infestações. Sem os holandeses ou ingleses, não surgiram os plantadores, o trabalho braçal, colheitas pagas à vista e destinadas à exportação. Não houve a exaustão sistemática do nosso solo, não houve uísque, calvinismo, sífilis ou administradores estrangeiros. Permitiram-nos seguir nosso próprio caminho e tomar a responsabilidade de nossos próprios negócios.