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— Aí está — disse ele, entregando a Ranga o envelope fechado e endereçado. — Por favor, você poderia comprar o selo e enviá-la em tempo de alcançar o avião de amanhã?

— Pode ficar descansado — prometeu o rapaz.

Observando-os enquanto se retiravam, Will sentiu uma dor

aguda na consciência. Que jovens encantadores! E ele ali estava conspirando com Bahu e as forças da História, para subverter o mundo deles! Consolou-se com o pensamento de que, se ele não o fizesse, outra pessoa o faria. Além disso, mesmo que Joe Aldehyde obtivesse a concessão, eles continuariam a poder fazer amor do modo a que estavam acostumados. Ou será que não poderiam?

Da porta, a pequena enfermeira voltou-se para uma última palavra.

— Nada de ler — disse, com o dedo em riste. — Durma!

— Nunca durmo durante o dia — assegurou-lhe Will com uma ponta de perversa satisfação.

CAPÍTULO VII

Ele nunca dormia durante o dia, porém quando olhou para o relógio novamente eram quatro horas e vinte e cinco minutos e se sentia maravilhosamente repousado. Pegou as Notas sobre o que é quê e recomeçou a leitura que interrompera:

Dê-nos neste dia a nossa fé diária, porém livre-nos, ó Deus amado, da Crença.

Nesse ponto parara a leitura durante a manhã. A parte seguinte era a quinta.

O «eu» que penso ser e o «eu» que realmente sou! Em outros termos, o sofrimento e o fim do sofrimento. Cerca de um terço do sofrimento que devo suportar é inteiramente inevitável por ser inerente à própria condição humana. Representa o preço que todos temos que pagar pelo fato de sermos dotados de sensibilidade; embora sedentos de liberação, nos sujeitamos às leis naturais que nos obrigam a continuar caminhando (sem poder retroceder) através de um mundo inteiramente indiferente ao nosso bem-estar. Caminhando em direção à decrepitude e à certeza da morte. Os outros dois terços são «confeccionados em casa» e o universo os considera inteiramente supérfluos.

Will virou a página. Uma folha de bloco esvoaçou sobre a cama. Apanhando-a, olhou-a rapidamente. Havia umas vinte linhas escritas com boa caligrafia e, no fim da página, viam-se as iniciais S. M. Evidentemente não se tratava de uma carta e sim de um poema. Assim sendo, poderia ser considerado coisa pública. Passou a lê-lo:

Em algum lugar, entre o silêncio cruel e o último domingo, Cento e trinta mil sermões; Além, entre Calvino e Cristo (Deus nos ajude!), e os lagartos; Além, entre ver e falar, Além, entre a nossa suja torrente de palavras E a primeira estrela, grandes mariposas esvoaçando Entre fantasmas e flores, Está o lugar iluminado onde eu, Embora não mais o mesmo, Consigo me lembrar Da sabedoria do amor noturno da Outra Margem; E, escutando o vento, recordo também Aquela primeira noite insone da minha viuvez, Com a morte a meu lado na escuridão. Minha, minha, toda minha, inevitavelmente minha! Porém não sou mais eu mesmo E, nesta clareira que existe entre meu pensamento e o silêncio, Vejo tudo o que tinha e perdi, E as angústias e alegrias Brilham como as gencianas das relvas alpinas, Livres, azuis e abertas!

— Como gencianas — repetiu Will a si mesmo, lembrando— se daquelas férias de verão que passara na Suíça por volta dos seus doze anos de idade. Recordou-se das flores e das lindas borboletas (tão diferentes das inglesas) que vira nos prados que se elevavam acima do Grindelwald. Reviu o céu azul-escuro, o brilho do sol e as brilhantes e gigantescas montanhas que se erguiam do outro lado do vale. Diante de tanta beleza, tudo o que seu pai conseguira dizer, à guisa de comentário, fora que a paisagem se parecia com um anúncio de chocolate Nestlé. «Nem ao menos é chocolate puro», insistira com uma careta de desagrado. «É chocolate com leite!» Após aquele comentário se seguira uma ironia sobre a aquarela que sua mãe estava pintando (infelizmente tão mal) com tanto amor e cuidado: «O anúncio do chocolate com leite que a Nestlé rejeitou». Agora chegara sua vez: «Em vez de ficar aí gemendo de boca aberta como se fosse um idiota de aldeia, por que não faz algo inteligente para variar? Estude um pouco de gramática alemã, por exemplo». E, mergulhando a mão na mochila, puxara, dentre os ovos cozidos e os sanduíches, o horroroso livrinho marrom. Que homem detestável! No entanto, se Susila estivesse com a razão, deveria vê-lo (depois de se terem passado tantos anos) a brilhar como se fosse uma genciana.

Will passou os olhos novamente na última linha do poema.

— Livres, azuis e abertas!

— Viva!… — disse uma voz familiar.

Ele voltou-se para a porta.

— Falando do diabo, ou melhor, lendo o que o diabo escreveu… — disse ele, erguendo a folha de papel a fim de que ela pudesse ler.

Susila olhou-a.

— Oh! Isto! Como se boas intenções fossem o bastante para fazer boa poesia… — disse, suspirando e balançando a cabeça.

— Estava tentando pensar no meu pai como se fosse uma genciana porém só obtenho a imagem persistente de um grandíssimo molenga.

— Mesmo os molengas podem ser vistos como gencianas — respondeu Susila.

— Presumo que isso só aconteça no lugar descrito por você: Nesta clareira que existe entre meu pensamento e o silêncio.

— Susila concordou. — Como se chega até ela?

— Não se vai até ela. É ela que vem até você. Melhor ainda, na realidade, ela está aqui.

— Você é igualzinha à pequena Radha — queixou-se ele. — Sempre papagueando aquilo que o velho rajá diz no princípio do seu livro.

— Se o repetimos — disse ela — é porque é verdadeiro. A não-repetição significaria a ignorância dos fatos.

— Quais fatos? — perguntou ele. — Certamente não os meus.

— Não neste momento — concordou ela. — Mas, se você fizesse as coisas recomendadas pelo velho rajá elas poderiam se tornar os seus fatos.

— Você teve alguma dificuldade com seus pais? — perguntou Will após um curto silêncio. — Ou sempre teve a faculdade de ver gencianas em vez de molengas?

— Naquela idade, não — respondeu ela. — As crianças têm que ser dualistas, maniqueus. Este é o preço que temos de pagar para aprender os rudimentos da arte de como nos tornar seres. Ver gencianas em vez de molengas, ou melhor, ver tanto as gencianas quanto os molengas como se ambos fossem Gencianas com G maiúsculo, isto é uma proeza somente reservada a quem já foi diplomado.

— Como você procedeu com seus pais? Limitou-se a sorrir e a tolerar o intolerável? Ou seu pai e sua mãe eram toleráveis?

— Toleráveis quando separados — respondeu ela. — Especialmente meu pai. Mas completamente insuportáveis quando juntos; insuportáveis porque não podiam suportar um ao outro. Imagine uma mulher dinâmica, alegre e extrovertida, casada com um homem permanentemente introvertido! Ela era uma fonte de contínua irritação para ele e creio que essa irritabilidade ia até a cama. Ela nunca parava de falar; ele nunca iniciava uma conversa. O resultado disso foi que ele a julgava superficial e falsa e ela o considerava insensível, desdenhoso e destituído dos sentimentos humanos normais.

— Esperava que o seu povo fosse mais esperto e não caísse nesse tipo de armadilha.

— Somos realmente espertos — assegurou-lhe ela. — As moças e os rapazes são especialmente educados para saber o que esperar de pessoas cujo físico e temperamento sejam muito diferentes dos seus. Infelizmente, nem sempre as aulas produzem os resultados que se esperam. Em outros casos, a distância psicológica entre as pessoas envolvidas é tão grande que não pode ser vencida. Qualquer que tenha sido a razão permanece o fato de que meu pai e minha mãe nunca tentaram resolver suas diferenças. Haviam se apaixonado, só Deus sabe por quê!!! Mas, quando veio a aproximação, ela sentia-se constantemente magoada pela inacessibilidade dele, enquanto a camaradagem sem inibições dela o fazia encolher-se completamente aterrorizado dentro de seu acanhamento e de sua aversão. Minhas simpatias estavam sempre com meu pai, com quem muito me apreço, tanto no físico como no temperamento. Em nada me pareço com minha mãe, e lembro de que mesmo quando muito criança costumava me defender da sua exuberância. Ela era uma invasão permanente ao isolamento de qualquer pessoa. E ainda o é.