— Você é obrigada a vê-la com freqüência?
— Não, pois ela tem seu trabalho e suas amigas. Em nosso pequeno mundo, «mãe» é estritamente o nome de uma função, e esse título desaparece quando a missão foi devidamente cumprida. A ex-criança e a mulher que era mãe estabelecem um novo tipo de relações; quando se entendem bem, continuam se vendo com regularidade. Caso contrário, separam-se. Ninguém espera que permaneçam apegadas, pois o apego não pode ser comparado ao amor e, por isso, não pode ser encarado como qualquer coisa particularmente digna de crédito.
— Entendo que agora tudo esteja bem — disse Will. — E naquela época? Que aconteceu quando você era a criança que crescia entre duas pessoas que não podiam vencer o abismo que as separava? Sei o que significa. É como a história de fadas, com a diferença de que o fim é diametralmente oposto ao clássico refrão: «E eles viveram felizes para sempre».
— Levando em conta todos esses fatores desfavoráveis, conseguimos nos entender bastante bem.
— Como conseguiram isso?
— Não conseguimos nada. Tudo foi arranjado para nós. Você já leu o que o velho rajá escreveu a respeito de livrar-se dos dois terços do sofrimento que é «confeccionado em casa» e que é desnecessário?
Will fez que sim com a cabeça.
— Estava lendo a respeito quando você entrou.
— Bem, nos velhos maus tempos — continuou ela — as famílias palanesas eram tão propiciadoras de maus tratos, tiranas e criadoras de mentiras quanto a sua gente o é nos dias atuais. Eram tão horríveis que o dr. Andrew e o rajá da reforma decidiram que algo tinha que ser feito a respeito. As éticas budistas e o comunismo primitivo de aldeia foram habilmente trabalhados para servirem a planos nacionalmente delineados, e em apenas uma geração todo o sistema familiar foi radicalmente transformado. — Ela hesitou por um momento. — Deixe-me explicar — continuou — em termos do meu caso particular: o caso de uma filha única de duas pessoas que não podiam se compreender e que estavam sempre se desentendendo e discutindo. Nos velhos tempos, uma menina criada nesse ambiente se transformaria num destroço, numa rebelde ou numa conformista hipócrita e resignada. Porém, sob o novo regime, não tive que suportar sofrimento desnecessário e, por conseguinte, não fui forçada a me tornar um destroço, uma rebelde ou uma resignada. Por quê? Porque, desde o momento em que comecei a andar, era livre para fugir.
— Fugir? — perguntou Will. — Fugir?!
Parecia bom demais para ser verdade.
— Fugir — explicou ela — está no novo sistema. Em qualquer tempo em que o «lar, doce lar» paterno se torna insuportável, a criança tem permissão, ou melhor, é ativamente encorajada (e todo o peso da opinião pública está por trás desse encorajamento) a emigrar para um outro lar.
— Quantos lares tem uma criança palanesa?
— Em média, uns vinte.
— Vinte?! Meu Deus!
— Todos nós pertencemos a um CAM (Clube de Adoção Mútua). Cada CAM é composto por quinze a vinte e cinco casais diferentes. Casais jovens, mais velhos e com filhos em idade de crescimento, avós e bisavós, todos os do clube se adotam mutuamente. Além dos nossos parentes consangüíneos, dispomos de uma porção de mães, pais, tias, tios, irmãos, irmãs, bebês e adolescentes que nós mesmos elegemos.
Will meneou a cabeça, incrédulo, dizendo:
— Ajudando no desenvolvimento de vinte famílias, em vez de uma só!
— Porém o tipo de família que havia anteriormente era igual ao seu tipo. As vinte são do nosso tipo. — Prosseguiu como se estivesse lendo um livro de receitas: — Tome um assalariado sexualmente incapaz, uma mulher insatisfeita, dois (ou mesmo três) pequenos viciados em televisão e faça um escabeche misturando uma porção de freudismo e uma solução fraca de cristianismo. Arrolhe bem num apartamento de quatro cômodos e cozinhe tudo isso durante quinze anos no próprio caldo. A nossa receita, por outro lado, é bastante diferente: tome vinte casais sexualmente satisfeitos, juntamente com a prole deles. Adicione ciência, intuição e humor em partes iguais. Ingresse no budismo tantrik e ponha a mistura a ferver ao ar livre, lenta e indefinidamente, numa panela aberta, colocada sobre a chama viva da afeição.
— E o que resulta dessa panela aberta?
— Uma espécie de família completamente diferente da do seu mundo e onde não existe nada de exclusivismo, de predestinado e de compulsório. Ao contrário, tudo é feito para que a predestinação seja substituída pela escolha voluntária. Vinte pares de pais e mães, oito ou nove ex-pais e ex-mães, além de quarenta ou cinqüenta crianças dos mais variados tipos e idades.
— As pessoas permanecem no mesmo clube de adoção por toda a vida?
— Claro que não. As crianças mais crescidas não adotam seus próprios pais, irmãos e irmãs. Elas saem e adotam outros mentores, um grupo diferente de companheiros da mesma idade e também mais moços. Os membros do novo clube os adotam e, com o passar do tempo, os filhos dos casais também os aceitam como componentes da família. Nossos sociólogos chamam a isso de «hibridação de microculturas» e dizem que os efeitos são tão bons quanto aqueles que permitem a obtenção de diferentes variedades de milho ou de galinhas. Disso resultam relações mais sadias em grupos mais responsáveis; surgem simpatias mais amplas e uma compreensão mais profunda. E as simpatias e compreensões se estendem a todos os componentes do CAM desde as criancinhas até os centenários.
— Centenários? Qual a média de vida aqui?
— Apenas um ano ou dois acima da de vocês — respondeu Susila. — Dez por cento da população ultrapassa os sessenta e cinco anos. Os velhos que não estão em condições de ganhar a vida recebem uma pensão. É óbvio que a pensão não é suficiente e eles necessitam fazer algo que seja ao mesmo tempo útil e tentador. Precisam de pessoas a quem possam dedicar cuidados e de quem recebam amor. Os CAM preenchem essas lacunas.
— Isso tudo parece tão suspeito quanto a propaganda das novas comunas chinesas — disse Will.
— Nada poderia ser menos parecido com uma comuna que o CAM Um CAM não é controlado pelo governo e sim por seus membros. Além disso, não somos militaristas e não estamos interessados em nos tornar «bons membros do partido»… Nosso único objetivo consiste em nos tornarmos bons seres humanos. Não incutimos dogmas e não tiramos as crianças de seus pais. Pelo contrário, damos alguns pais adicionais. E, aos pais, oferecemos filhos adicionais. Mesmo no berçário gozamos de um certo grau de liberdade. Essa liberdade aumenta à medida que crescemos e que vamos nos capacitando a lidar com responsabilidades mais amplas e mais sérias. Enquanto isso, na China não há a menor liberdade. As crianças são entregues a «domesticadoras oficiais de bebês», cuja única missão consiste em transformá-los em seres obedientes ao Estado. As coisas são consideravelmente melhores na parte do mundo de onde você vem. Melhores, porém ainda assim bastante más. Vocês escapam às domesticadoras de bebês designadas pelo Estado, porém sua sociedade condena alguém a passar a infância numa família composta dos pais e de um par de irmãos que lhe foram impostos pela predestinação hereditária. Não há nenhuma possibilidade de se ficar livre deles. Não se pode ficar longe deles durante as férias e muito menos ir viver com outra pessoa. Não existe chance de uma mudança moral ou psicológica. Tem-se liberdade, é claro, mas a espécie de liberdade que se tem dentro de uma cabine telefônica.