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— Agora vejo aonde quer chegar.

— Até que enfim! — brincou ela.

— Sou mandado brincar no jardim para que os «crescidos» possam trabalhar em paz. Mas quem são os «crescidos»?

— Não sei. Essa é uma pergunta que deve ser feita a um neuroteólogo.

— Qual o seu significado?

— Significa exatamente o que diz. Alguém analisa as pessoa e as vê ao mesmo tempo em termos da «luz clara do vazio» e do sistema neurovegetativo. Os «crescidos» são um misto de intelecto e de fisiologia.

— E as crianças?

— As crianças são aqueles que pensam saber mais que os «crescidos».

— E, por isso, devem ser mandados «brincar lá fora».

— Exatamente.

— Esse é o tratamento-padrão usado aqui em Pala?

— Sim, é o método comum. Na sua parte do mundo, os médicos se livram das crianças envenenando-as com barbitúricos. Nós o fazemos através de conversas a respeito de catedrais e de gralhas. — A voz dela adquiriu um tom monótono. — Falamos a respeito de brancas nuvens flutuando no céu, cisnes brancos deslizando no escuro e também sobre o irresistível rio da vida…

— Vamos, vamos, nada disso! — protestou Will. Um sorriso iluminou o grave rosto moreno e ela começou a rir. Will olhou-a atônito. Eis que subitamente lá estava uma pessoa diferente, outra Susila MacPhail, alegre, travessa e irônica. — Já conheço seus truques — acrescentou ele, aderindo ao riso.

— Truques? — Ainda rindo, ela negou com um movimento de cabeça. — Apenas lhe explicava como agi.

— Sei exatamente como você o fez e também sei que funciona. E, ainda mais, dou-lhe permissão de fazê-lo de novo, quando for necessário.

— Caso queira, lhe mostrarei como pressionar seus próprios botões — disse ela com maior seriedade. — Nós o ensinamos em todas as nossas escolas elementares. Os três erres mais CD.

— O que vem a ser isso?

— Autodeterminação, aliás, Controle do Destino.

— Controle do Destino? — perguntou ele, erguendo as sobrancelhas.

— Não. Nós não somos tão tolos como você parece pensar. Sabemos perfeitamente que somente uma parte do nosso destino é controlável.

— E vocês o controlam apertando os próprios botões?

— Sim. Apertando nossos próprios botões e visualizando em seguida aquilo que gostaríamos que acontecesse.

— Mas isso é possível?

— Sim, em vários casos.

— É tão simples! — disse Will em tom de ironia.

— Maravilhosamente simples — concordou ela. — No entanto, pelo que sei, somos o único povo que ensina sistematicamente o CD (Controle do Destino) às crianças. Vocês lhes dizem aquilo que devem fazer em termos de «proceder bem». Mas como proceder bem? Isso vocês nunca lhes ensinam. Tudo o que fazem fica restrito a alguns sermões e punições. Pura idiotice!

— Pura e simples idiotice — concordou ele, lembrando-se de Mr. Crabbe (o superior do internato) discorrendo sobre o assunto da masturbação. Recordou aqueles sermões semanais prefabricados e a cerimônia da cominação na quarta-feira de cinzas: «Amaldiçoado é aquele que se deita com a esposa do seu vizinho. Amém».

— Se suas crianças levarem a sério todas essas idiotices, crescem para se tornar míseros pecadores. Se não levarem a sério, ao crescerem se transformarão em pobres cínicos. Caso reajam contra o cinismo ficam aptos cara o papismo ou o marxismo. Não admira que lhes sejam necessários todos aqueles milhares de prisões, de igrejas e células comunistas.

— Enquanto isso, existem muito poucas aqui em Pala, não é verdade?

Susila concordou.

— Não temos nada de Alcatrazes nem de Billy Graham nem de Mao Tsé-Tung e nem de Nossa Senhora de Fátima. Nada de infernos na terra, nada de desordem cristã no céu ou de agitações comunistas no vigésimo segundo século. São apenas homens, mulheres e crianças que tentam fazer o melhor, aqui e agora, ao invés de viverem (como a maioria de vocês) algures, em outra época, em um universo imaginário. Mas tenho de admitir que são isentos de culpa. O presente é tão decepcionante que são praticamente compelidos a viver desse modo. Tudo isso é altamente desapontador porquanto nunca lhes foi ensinado como transpor a brecha que existe entre a teoria e a prática, entre as resoluções do ano novo e o procedimento real.

— Pelo bem que poderia fazer e não faço. Pelo mal que faço e que não deveria fazer — citou Will.

— Quem disse isso?

— São Paulo, o homem que inventou o cristianismo.

— Veja só, ideais tão elevados e sem os métodos para serem postos em prática! — disse ela.

— Existe apenas o método sobrenatural de se esperar que Alguém os realize. — Atirando a cabeça para trás, Will Farnaby começou a cantar:

Existe uma fonte cheia de sangue Retirado das veias de Emanuel, Onde os pecadores que nela mergulharem Terão limpas todas as suas manchas.

Susila tapou os ouvidos.

— É realmente obsceno — disse.

— Esse era o hino preferido do superior do internato. Costumávamos cantá-lo pelo menos uma vez por semana, durante o meu tempo de colégio — explicou Will.

— Graças a Deus nunca houve nenhum sangue no budismo. Gautama viveu até os oitenta anos e morreu por ter sido tão cortês a ponto de não recusar mesmo comida de má qualidade. Morte violenta sempre atrai mortes violentas. Se não acreditares que foste redimido pelo meu sangue redentor, eu te afogarei no teu próprio sangue. No ano passado fiz um curso de História do Cristianismo em Shivapuram. — Susila estremeceu a essa lembrança. — Que coisa horrível! Tudo porque aquele pobre e ignorante homem não soube como executar suas boas intenções.

— A maioria de nós continua ainda no mesmo velho caminho. O mal que não faríamos e que fazemos. E como fazemos!

Reagindo imperdoavelmente ao imperdoável, Will Farnaby sorriu zombeteiramente. Sorriu porque, mesmo depois de ter percebido a bondade de Molly, escolhera a alcova rosa e, com isso, causara sua infelicidade e sua morte, e que lhe deixara aquele inquietante sentimento de culpa. Havia também a dor martirizante, inteiramente fora de propósito (cuja causa reconhecia ser vulgar e ridícula) que sentira quando Babs fez com ele aquilo que a mais tola das pessoas poderia prever: mandara-o sair de seu paraíso iluminado pelo gim, elegendo um novo amante.

— Que foi que houve? — perguntou Susila.

— Nada. Por que pergunta?

— Porque você não é muito hábil em esconder seus sentimentos. Parecia pensar em algo que o tornou infeliz.

— Você tem olhos muitos penetrantes — disse ele, desviando o rosto.

Fez-se um longo silêncio entre eles.

Deveria falar a ela a respeito de Babs, da pobre Molly, sobre si mesmo e todas as coisas tristes e sem sentido que nunca, nem mesmo embriagado, dissera a seu melhor amigo? Os velhos amigos sabiam demais a respeito de alguém e das outras pessoas envolvidas. Sabiam demais a respeito de um jornalista duro e que era o agente particular (muito bem pago) de um homem rico a quem desprezava. Sabiam também que esse jornalista era um gentleman inglês e um boêmio com pretensões à poesia, que se desesperava por saber que nunca seria um bom poeta. Sabiam quanto de grotesco, de complicado e de laborioso havia no jogo em que estava envolvido.

Não, os velhos amigos não eram os indicados. Mas dessa pequena morena, dessa intrusa, não viriam quaisquer conclusões antecipadas nem tampouco julgamentos exparte. Dessa estranha a quem ele já devia tanto e de quem (apesar de nada saber a respeito) se sentia tão íntimo, talvez viesse algum esclarecimento inesperado ou alguma ajuda positiva e prática. Ficou admirado por ainda «esperar», ele que estava tão treinado em nunca esperar. Deus sabia quanto precisava de ajuda. Mas também sabia que ele nunca pediria essa ajuda.