— Fico admirada de que todos não tenham enlouquecido! — disse Susila.
— Felizmente a maioria acreditava somente de modo superficial — disse o dr. MacPhail, batendo com a mão no alto de sua cabeça. — Sem se aprofundarem, estavam convencidos de que suas crenças representavam a Verdade, escrita com o maior V. Mas suas glândulas e suas vísceras sabiam que tudo não passava de pura tolice. Para a maioria, a verdade só tinha sentido aos domingos e, assim mesmo, num sentido estritamente pickwickiano. James MacPhail sabia tudo isso e se impôs a obrigação de não permitir que seus filhos fossem crentes dos sabás. Teriam de acreditar em todas as tolices sagradas, mesmo nas segundas-feiras e nas tardes dos feriados. Eles teriam de acreditar com todas as suas forças e não apenas de um modo cômodo e superficial. Uma fé perfeita e a paz integral que dela advém teriam de ser-lhes incutidas. Como? Dando-lhes o inferno na terra e ameaçando-os com ele na outra vida. E se eles, em sua diabólica perversidade, se recusassem a ter essa fé perfeita e assim obterem a paz, ele lhes daria ainda mais inferno e os ameaçaria com fornalhas ainda mais quentes. Enquanto isso, lhes diria que as boas obras são meros farrapos aos olhos de Deus e os puniria cruelmente pelo menor deslize. Incutiria em suas mentes a certeza de que, por natureza, eles eram inteiramente depravados e os castigaria por serem o que não podiam deixar de ser.
Will Farnaby folheou o álbum.
— Você tem algum retrato desse seu encantador ancestral?
— Tínhamos uma pintura a óleo que foi destruída pelo excesso de umidade e pelos insetos. Era um magnífico espécime. Tal qual uma pintura de Jeremias, da época da Renascença: majestoso, olhos inspiradores e aquela espécie de barba profética que cobre uma profusão de pecados que se estampam na face. A única relíquia dele que restou foi um esboço a lápis de sua casa. — Voltando outra página do álbum, Will o encontrou. — Era uma casa de granito e com grades em todas as janelas — continuou. — Dentro dela, no aconchego daquela pequena «família da Bastilha», quanta desumanidade sistemática era praticada em nome de Cristo e da justiça! Sabemos de tudo isso porque o dr. Andrew deixou uma autobiografia inacabada.
— As crianças não foram ajudadas pela mãe?
O dr. MacPhail balançou a cabeça negativamente.
— Janet MacPhail era da família Cameron e calvinista tão convicta quanto o marido. Pelo fato de ser mulher podia ir ainda mais longe, pois tinha um número ainda maior de espontaneidades a vencer. Ela as venceu heroicamente. Em vez de tentar deter o marido, ela o incitava e o apoiava. Havia sermões antes do café da manhã e antes do almoço. Havia catecismo aos domingos e as epístolas tinham que ser decoradas. Todas as noites, após a soma e a avaliação das faltas cometidas durante o dia, as seis crianças, tanto as meninas como os meninos, a começar pelo mais velho, eram metodicamente chicoteadas nas nádegas nuas com uma chibata de osso.
— Sempre que me lembro disso me sinto enojada — disse Susila. — É puro sadismo!
— Não, não é puro sadismo. É sadismo aplicado — disse o dr. MacPhail. — É sadismo por uma razão mais dissimulada, sadismo a serviço de um ideal, sadismo como uma convicção religiosa. Aliás, as relações entre a teologia e o castigo corporal na infância são um assunto que merece um estudo histórico a respeito — concluiu, dirigindo-se para Will. — Minha teoria é que, se as crianças de qualquer parte são sistematicamente flageladas, crescem com a impressão de que Deus é o Totalmente Diverso. Não é esse o argot em moda no seu lado do mundo? Se, pelo contrário, as crianças são criadas sem serem sujeitas à violência física, consideram Deus como coisa imanente. A teologia de um povo reflete o estado de seu traseiro na infância. Tome como exemplo os hebreus e todos os bons cristãos da Idade da Fé. Desde Jeová, desde o Pecado Original. Desde o Pai, infinitamente ultrajado, das ortodoxias romana e protestante, todos têm sido entusiastas flageladores de crianças. Enquanto isso, entre os budistas e os hindus, a educação sempre tem sido ministrada sem o uso da violência, sem o seviciamento de pequeninas nádegas. Daí o Tat Twam asi ou «Tu és Esse»; as mentes vindas da Mente não são divisíveis. Posso ainda citar o exemplo dos quacres, que ainda eram bastante heréticos para acreditar na «luz interior». Que aconteceu? Cessaram de espancar seus filhos e, assim, tornaram-se a primeira seita de cristãos a protestar contra a instituição da escravatura.
— Mas o castigo corporal das crianças quase não é mais usado em nossos dias, e é exatamente neste momento que as explicações sobre o Totalmente Diverso estão em plena moda — argumentou Will.
O dr. MacPhail rebateu a objeção:
— Isso é simplesmente um caso de ação seguida de reação. Na segunda metade do século XIX a filantropia livre-pensadora se tornara tão forte que mesmo os bons cristãos foram por ela influenciados e cessaram de castigar os filhos. Não houve vergastadas nos traseiros das gerações mais jovens. Em conseqüência disso, deixaram de imaginar Deus como sendo o Totalmente Diverso e inventaram o «pensamento novo», a «ciência cristã», a «unidade» e todas as heresias semi-orientais, nas quais Deus é o Totalmente Idêntico. Esse movimento, que fora iniciado antes de William James, cada dia reúne maior número de adeptos. Porém, como toda tese tem sua antítese, depois de algum tempo essas heresias originaram a «neo-ortodoxia». Abaixo o Totalmente Idêntico! Queremos a volta do Totalmente Diverso! Voltaram a Agostinho, a Martinho Lutero; em uma palavra, voltaram aos dois traseiros mais implacavelmente flagelados de toda a história do pensamento cristão. Leia as Confissões e a Conversa de mesa. Quando Agostinho, tendo sido espancado por seu professor, foi queixar-se aos pais, estes riram-se dele. Lutero foi sistematicamente chicoteado, não apenas por seu pai e professores, mas também por sua carinhosa mãe. Desde então, o mundo tem pago por essas cicatrizes que tinham nas nádegas. As monstruosidades que foram o prussianismo e o Terceiro Reich nunca teriam existido sem Lutero e sua teologia cheia de flagelações. Quanto à teologia de flagelação de Agostinho, Calvino conduziu-a a conclusões lógicas que foram inteiramente absorvidas por pessoas piedosas, tais como James MacPhail e Janet Cameron. Sua premissa maior é que Deus é o Totalmente Diverso e sua premissa menor é que «o homem é totalmente depravado». Conclusão prática: «Faça nos traseiros de seus filhos aquilo que foi feito no seu». É isso que o Pai do Céu tem feito nos traseiros da humanidade, desde o Pecado Originaclass="underline" chicoteado, chicoteado, chicoteado.
Houve um silêncio. Will Farnaby olhou novamente para o esboço do homem granítico da cordoaria e pensou em todas as grotescas e horríveis fantasias elevadas ao grau de fatos sobrenaturais, nas dores infligidas e em todas as misérias suportadas por sua causa. Quando não é Agostinho em sua «aspereza benigna», é Robespierre ou Stalin. Quando não é Lutero exortando os príncipes a matar os plebeus, é um genial Mao que os reduz à escravatura.
— Em certas ocasiões não se sente desesperado? — perguntou.
O dr. MacPhail abanou a cabeça:
— Não nos desesperamos porque sabemos que as coisas não têm que ser necessariamente como sempre foram.
— Sabemos que podem ser muito melhores — acrescentou Susila. — Sabemos porque, neste momento e nesta ilha pequena e ridícula, elas já estão muito melhoradas.
— Se seremos capazes de convencê-los a seguir nosso exemplo — disse o dr. MacPhail —, ou se, pelo menos, conseguiremos preservar este minúsculo oásis no meio desse seu mundo, que é uma verdadeira selva de macacos, é outra questão. Embora a situação atual justifique o mais extremo pessimismo, não vejo razão para o desespero total.
— Nem mesmo quando lê a História?