— Nem assim.
— Sinceramente, eu o invejo. Como consegue fazê-lo?
— Apenas me lembrando de que a História é um documento que registra as coisas que os seres humanos foram impelidos a fazer devido à ignorância. E foi com arrogância que canonizaram a ignorância, transformando-a em dogma político ou religioso. — Voltando-se novamente para o álbum, disse: — Voltemos àquela casa em Royai Burgh, onde moram James, Janete e as seis crianças a quem o Deus de Calvino, na Sua inescrutável malevolência, condenou a viver à mercê de seus carinhos. O castigo e a repressão conduzem à sabedoria, porém uma criança entregue a si mesma envergonha sua mãe. O doutrinamento reforçado pela tensão psicológica e pela tortura física forma a base do pavlovianismo perfeito. Mas, para infelicidade das religiões organizadas e dos regimes ditatoriais, os seres humanos são muito menos dignos de confiança, como animais de experiência, do que os cães. O condicionamento funcionou a contento em Tom, Mary e Jean. Tom se tornou um pastor protestante, Mary se casou com um pastor protestante e morreu, muito apropriadamente, ao dar à luz uma criança. Jean permaneceu em casa e cuidou durante muito tempo da mãe, que fora acometida de um câncer de evolução lenta. Depois disso, consagrou os vinte anos que se seguiram inteiramente ao patriarca, que, com a idade, foi se tornando caduco. Até aí tudo correu bem, mas com Annie, a quarta filha, as coisas saíram da rotina. Ela era bonita e, aos dezoito anos, um capitão dos dragões lhe propôs casamento. Mas o capitão era anglicano e suas opiniões a respeito da depravação total e das boas alegrias proporcionadas por Deus foram consideradas errôneas. O casamento foi proibido. Tudo fazia crer que ela teria o mesmo destino de Jean, e durante dez anos permaneceu em casa. Aos vinte e oito anos, deixou-se seduzir pelo segundo oficial de um navio da East Indiaman e, durante sete semanas, gozou de uma felicidade como nunca conhecera na vida. Seu rosto estava como que transfigurado por uma espécie de beleza sobrenatural e seu corpo resplandecia de vitalidade. O segundo oficial embarcou então para uma viagem de dois anos a Madras e Macau. Quatro meses depois, Annie, grávida, sem amigos e desesperada, lançou-se às águas do Tay. Enquanto isso, Alexandre, o quinto descendente, fugira da escola e fora juntar-se a uma companhia de teatro. Desde então, na casa do cordeiro, ninguém tinha permissão de mencionar seu nome. Andrew, o caçula, era o benjamim da família. Obediente, gostava de estudar e aprendeu mais rápida e corretamente do que os outros irmãos as epístolas que lhe foram ensinadas. Uma vez, a tempo de fortificar a crença de sua mãe na licenciosidade dos seres humanos, ela o surpreendeu mexendo nos órgãos genitais. Foi chicoteado até sangrar. Algumas semanas depois, foi novamente surpreendido, novamente chicoteado e preso a pão e água numa solitária. Disseram-lhe também que cometera um pecado contra o Espírito Santo e que este era, sem dúvida, o motivo por que sua mãe estava cancerosa. Durante todo o resto de sua infância Andrew foi acometido por pesadelos freqüentes, relacionados com o inferno. Quando sucumbia às tentações que periodicamente o perseguiam, refugiava-se na latrina existente no fundo do jardim. Cada vez que isso acontecia, mais aterrorizado ficava ante as versões dos terríveis castigos que o esperavam.
— E ainda se afirma que a vida moderna não tem significação — comentou Will. — Veja o que era a vida quando se dizia que tinha significação! Se tiver que escolher entre uma história contada por um idiota ou por um calvinista, minha preferência sempre recairá no idiota.
— Concordo — disse o dr. MacPhail. — Mas não haverá uma terceira possibilidade? Será que não existe uma história contada por alguém que não seja imbecil ou paranóico?
— Por alguém que, fugindo a essa regra, seja mentalmente sadio? — disse Susila.
— Seria uma exceção abençoada — disse o dr. MacPhail. — Felizmente, até o velho regime existiam pessoas que mesmo a educação mais diabólica não conseguiu arruinar. Admitindo— se como válidas as afirmações pavlovianas e freudianas, meu bisavô deveria ter se tornado um doente mental. Na realidade, tornou-se um verdadeiro atleta mental. Isso apenas vem provar quão inadequados são esses dois sistemas psicológicos. Freudismo e behaviorismo, pólos opostos mas que concordam inteiramente quando, discutindo os fatos referentes à formação da personalidade, mencionam as diferenças congênitas entre os indivíduos. Como é que seus preciosos psicólogos manejam esses problemas? Simplesmente ignorando-os ou cautelosamente negando que existam. Daí advém a total incapacidade que demonstram ao lidar com a verdadeira situação do homem, tal como ele é, ou mesmo no plano puramente teórico. Examinemos esse caso em particular: os irmãos e as irmãs de Andrew ou foram dominados pelo meio ambiente ou foram destruídos. Por quê? Porque a roleta da hereditariedade parou num número de sorte. Ele tinha uma constituição mais elástica que os outros, uma anatomia, um bioquimismo e um temperamento diferentes. Seus pais foram tão nocivos a ele quanto a seus infortunados irmãos. Apesar disso, Andrew superou todos os obstáculos praticamente incólume.
— A despeito dos pecados contra o Espírito Santo?
— Felizmente se libertou desse problema durante o primeiro ano de seu curso médico em Edimburgo. Era muito jovem, tinha dezessete anos, mas naquele tempo começavam cedo. Nas salas de dissecção, o rapaz começou a ouvir as obscenidades extravagantes e as blasfêmias com as quais seus colegas mantinham a alegria entre os cadáveres que lentamente se decompunham. A princípio escutava-as cheio de horror, temendo uma vingança divina que nunca chegou. Os blasfemadores floresciam e os espalhafatosos fornicadores continuavam sem outra punição além de uma gonorréia de vez em quando. Na mente de Andrew o medo foi substituído por uma enorme sensação de alívio e liberdade, e ousou mesmo fazer algumas brincadeiras obscenas. A primeira vez que proferiu uma palavra de quatro letras constituiu um ato de libertação, uma experiência genuinamente religiosa. Nas horas vagas leu Tom Jones, o Ensaio sobre os milagres, de Hume, e o irreligioso Gibbons. Após ter conseguido melhorar o francês que aprendera na escola, leu La Mettrie e o dr. Cabanis. O homem é uma máquina cujo cérebro segrega idéias do mesmo modo que o fígado segrega a bile. Como tudo era simples e claro! Com o fervor de um converso numa «renovação» religiosa, se decidiu pelo ateísmo. Devido às circunstâncias, isso não constituiu surpresa. Em determinado momento não se consegue mais suportar Santo Agostinho nem tampouco repetir as incoerências atanasianas. Então, puxa-se a descarga e se lança tudo pelos esgotos. A esse ato segue-se uma felicidade que dura pouco! Descobre-se que alguma coisa está faltando. O bebê experimental também foi lançado nos esgotos, juntamente com as sujeiras teológicas e com a água de sabão. Mas a natureza abomina o vazio e a felicidade é substituída por um mal-estar crônico e se passa a ser atormentado por uma sucessão de Werleys, Puseys, Moodies e Billies (Domingo e Graham). Todos trabalhando como castores para retirar a teologia da fossa, com isso esperando salvar o bebê. Nunca obtêm sucesso. Tudo o que esses predicantes conseguem é sifonar um pouco dessa água suja que, depois de algum tempo, é novamente jogada fora. Isso acontece indefinidamente e sempre do mesmo modo. Após algum tempo o dr. Andrew chegou à conclusão de que essas coisas eram extremamente maçantes e totalmente desnecessárias. Nessa época estava inteiramente embriagado pela sua recente liberdade. Sua exaltação e entusiasmo se escondiam atrás daquela aparência sóbria e cortês que usava nos seus contatos com o mundo.
— Ele teve alguma desavença com o pai? — perguntou Will.
— Nenhuma, pois não gostava de discussões. Era desse tipo de homem que, sem alardear, só faz o que quer. Do tipo que não discute com aqueles que discordam dos seus pontos de vista. Seu pai nunca teve oportunidade de usar as lamentações de Jeremias, pois Andrew nunca mencionou Hume e La Mettrie e continuou a seguir as tradições. Terminado o curso, limitou-se muito simplesmente a não voltar para casa. Dirigiu-se a Londres e se engajou como cientista e naturalista no HMS Melampus, que estava prestes a zarpar para os mares do Sul a fim de fazer serviços de levantamento hidrográfico, coletar espécimes marítimos e proteger os missionários protestantes e os interesses britânicos. O cruzeiro do Melampus levou três anos e, nesse período, aportou no Taiti, permaneceu dois meses em Samoa e um mês nas ilhas Marquesas. Depois de Perth, as ilhas lhe pareceram verdadeiros edens que infelizmente eram imunes não só ao calvinismo, ao capitalismo e aos cortiços das cidades industriais, mas também a Shakespeare, Mozart, aos conhecimentos científicos e ao pensamento lógico. Era um paraíso, mas não o sentia como tal. Prosseguindo viagem, teve oportunidade de visitar as Fiji, as Carolinas e as Salomão. Cartografaram a costa ao norte da Nova Guiné, e em Bornéu um grupo que foi à terra capturou uma fêmea de orangotango grávida e galgou o monte de Kinabalu. A isso seguiu-se uma semana em Pannoy e uma quinzena no arquipélago de Mergui, de onde se dirigiram para o oeste, em direção de Andaman, e dali para a índia. Lá, numa queda de cavalo, meu bisavô quebrou a perna direita. O comandante do Melampus contratou outro cirurgião e voltou para a Inglaterra. Dois meses depois, completamente restabelecido, Andrew começou a clinicar em Madras. Naquela época existiam poucos médicos e a freqüência das doenças era assustadora. O jovem começou a prosperar, mas a vida entre os funcionários do governo e os comerciantes era terrivelmente enfadonha. Era um exílio sem as compensações do exílio: sem aventuras e sem originalidade. Um simples retiro para as províncias, para os equivalentes tropicais de Swampsea e Huddersfield. Apesar disso, resistiu à tentação de comprar uma passagem de volta no primeiro navio que se destinava à pátria. Se conseguisse tolerar aquilo por cinco anos, teria dinheiro bastante para adquirir uma clínica em Edimburgo. Ou, pensando melhor, no West End de Londres. Antevia um futuro «rosa e dourado». Haveria uma esposa, que preferia tivesse cabelos castanho-avermelhados e que fosse despretensiosa e recatada. Teriam quatro ou cinco filhos felizes que nunca seriam chicoteados e que permaneceriam ateus. Sua clínica aumentaria e seus doentes proviriam de camadas sociais cada vez mais elevadas. Fortuna, reputação, respeitabilidade, talvez mesmo um título de nobreza… Via, em imaginação, sir Andrew MacPhail descendo de seu carro puxado por um cavalo em Belgrave Square. O grande sir Andrew, médico da rainha! Chamado a São Petersburgo para operar um grão-duque. Indo às Tulherias, ao Vaticano e à Porta Sublime. Fantasias deliciosas! Mas a realidade se tornou ainda mais interessante. Numa bela manhã, um estranho de pele trigueira procurou o cirurgião. Num inglês hesitante se deu a conhecer. Vinha de Pala e tinha sido mandado por Sua Alteza o rajá, a fim de procurar e levar consigo um cirurgião ocidental que fosse bastante hábil. A recompensa seria principesca. Principesca, insistiu o emissário. No mesmo instante o dr. Andrew aceitou o convite. Em parte, naturalmente, devido à oferta de boa remuneração. Mas o que realmente fizera com que aceitasse logo a proposta fora a necessidade de sair daquele marasmo e sentir o gosto da aventura. Uma viagem à «ilha proibida» tinha um irresistível poder de atração.