— Convém lembrar que, naquela época, Pala era ainda mais proibida do que agora — comentou Susila.
— Por aí você pode avaliar o entusiasmo com que o jovem dr. Andrew aceitou a oportunidade que lhe fora oferecida pelo embaixador do rajá! Dez dias depois seu navio ancorou na costa norte da ilha proibida, onde desembarcou levando a maleta de instrumentos, um baú contendo medicamentos e outro menor onde estavam suas roupas e alguns livros que considerava indispensáveis. Através de um mar de ondas agitadas, foi conduzido à terra numa guiga. Em palanquim foi levado pelas ruas de Shivapuram e deixado no pátio do palácio. Seu real paciente o aguardava ansioso. Sem ter tido tempo de se barbear ou mesmo trocar de roupa, o dr. Andrew foi conduzido à presença de um homem trigueiro, franzino, com pouco mais de quarenta anos e terrivelmente emaciado sob os ricos brocados. Seu rosto, de tão inchado, não parecia humano, e sua voz não era mais que um rouco sussurro. Seu aspecto inspirava compaixão. Ao examiná-lo, o dr. Andrew constatou a existência de um tumor que se originara no centro do maxilar e se irradiara em todas as direções. As narinas estavam invadidas, bem como a órbita direita. A garganta estava quase inteiramente bloqueada. A respiração se tornara difícil, a deglutição intensamente dolorosa. Também não podia conciliar o sono porque, quando isso acontecia, despertava sufocado, lutando para respirar. Sem uma cirurgia radical era evidente que morreria dentro de poucos meses. Com a mesma, em ainda menos tempo. Não nos esqueçamos de que aquela era a época da cirurgia séptica e sem o auxílio de anestesia pelo clorofórmio. Mesmo em condições ideais, a mortalidade era de um doente para cada quatro operados, e, em condições menos propícias, atingia cinqüenta por cento, com um mínimo de trinta e um máximo de cem por cento. O prognóstico nesse caso não poderia ser pior. O paciente estava debilitado e a operação seria longa, difícil e incrivelmente dolorosa. O óbito poderia ocorrer durante a operação e era quase certo que, se sobrevivesse, seria vitimado pela septicemia, após alguns dias. Se ele morresse, pensava o dr. Andrew, qual seria o destino do cirurgião estrangeiro que matara o rei? E, durante a operação, quem conteria o real paciente enquanto se contorcesse sob o bisturi? Qual o criado ou cortesão que teria o entendimento para não obedecer ao patrão quando este gritasse de dor ou lhe ordenasse que o soltasse?
— Talvez o mais acertado fosse dizer logo que nada havia a ser feito, que o caso era perdido e pedir que o enviassem imediatamente para Madras. Foi então que olhou de novo para o doente e viu que, através daquele rosto grotescamente deformado, o rajá o fitava com os olhos de um condenado que pede a compaixão de seu juiz. Emocionado com aquele apelo, o dr. Andrew sorriu-lhe encorajadoramente e, enquanto lhe segurava a mão descarnada, teve uma idéia. Era uma idéia absurda, inteiramente destituída de fundamento, mas, no entanto…
— Lembrou-se de que, havia cinco anos, enquanto cursava a Universidade de Edimburgo, lera um artigo no Lancet no qual o famoso professor Elliotson era acusado pelo fato de advogar o magnetismo animal. Elliotson ousara comentar a respeito de operações indolores, feitas em pacientes em transe mesmérico.
— O homem era um louco ingênuo ou um canalha inteiramente inescrupuloso. O argumento que apresentava como concludente para essa tolice não tinha a menor valia. E, em seis colunas cheias de justa indignação, tudo aquilo era considerado pura impostura, fraude e charlatanice. Nessa época, o dr. Andrew ainda estava transbordante de La Mettrie, Hume, Cabanis e, cheio de ardor, leu e concordou com a crítica ortodoxa. Depois disso, esqueceu completamente a existência do magnetismo animal. Agora, à cabeceira do rajá, tudo lhe voltou à memória: o professor louco, os passes hipnóticos, as amputações sem dor, o baixo índice de mortalidade e as rápidas convalescenças. Apesar de tudo, talvez houvesse algum fundamento nessas coisas. Estava imerso em seus pensamentos quando o doente, quebrando um longo silêncio, falou-lhe num inglês que o surpreendeu pela fluência, apesar do forte sotaque londrino que adquirira com seu professor, um marinheiro que desertara de seu navio em Rendang-Lobo e conseguira atravessar o estreito. Aquele sotaque londrino — disse o dr. MacPhail com um sorriso — é mencionado de quando em vez nas Memórias de meu bisavô. Para ele, havia alguma coisa de inexprimivelmente impróprio no fato de um rei falar como Sam Weller: no caso do rajá, essa impropriedade deixava de ser apenas social, porquanto, além de ser um soberano, era também um intelectual altamente requintado, possuidor de convicções religiosas arraigadas (coisa que qualquer imbecil imaturo pode ter) e de grande vida introspectiva. Um homem de tão grande estatura mental, expressando-se no linguajar de Londres, era coisa com a qual um escocês do início da era vitoriana, leitor dos Pickwick Papers, não podia admitir. O rajá nunca pôde pronunciar com perfeição os ditongos e os agás aspirados, apesar do tato com que meu bisavô procurava corrigi-lo. Mas isso ocorreu depois. Naquele primeiro e trágico encontro, aquele acento vulgar e chocante causou-lhe grande emoção. Unindo as mãos num gesto súplice, o doente sussurrou: «Ajude-me, dr. MacPhail!»