— Que fizeram depois da vitória sobre a dor? — perguntou Will.
— Voltaram-se para a agricultura e para a linguagem. Contrataram na Inglaterra um homem para criar uma «Rothamsted nos trópicos» e se empenharam em dar aos palaneses uma segunda língua. Pala deveria permanecer uma ilha proibida e o dr. Andrew e o rajá concordaram inteiramente em que missionários, plantadores e comerciantes eram demasiadamente perigosos para serem tolerados. A entrada desses estrangeiros subversivos não devia ser permitida, mas os nativos podiam de algum modo ser auxiliados a deixar a ilha, pelo menos intelectualmente. Sua linguagem e a versão arcaica do alfabeto brâmane, porém, constituíam uma prisão sem janelas. Não havia saída, eles não conseguiram nem ao menos vislumbrar o mundo exterior, até que aprenderam o inglês e puderam ler os caracteres latinos. O aperfeiçoamento lingüístico foi se tornando moda na corte do rajá. A conversação entre damas e cavalheiros era entremeada de fragmentos de gíria londrina. Alguns deles chegavam a mandar buscar no Ceilão professores que falavam inglês, e o que a princípio era simples moda transformou-se em programa de ação. Foram construídas escolas inglesas e um grupo de impressores de Bengala, juntamente com suas prensas e tipos de Caslon e Bodoni, foi importado de Calcutá. O primeiro livro inglês a ser publicado em Shivapuram foi uma seleção das Mil e uma noites, e o segundo O diamante sutra, até então somente disponível em sânscrito ou em manuscrito. Aqueles que desejassem ler acerca de Simbá, o marujo, assim como os que se interessassem pela Sabedoria da outra margem, dispunham agora de duas fortes razões para aprender inglês. Isso foi o princípio do longo processo educacional que nos tornou um povo bilíngüe. Falamos palanês quando cozinhamos, quando contamos histórias cômicas, quando falamos de amor ou quando o fazemos. Diga-se de passagem que dispomos do mais rico vocabulário erótico e sentimental do sudoeste da Ásia. Para os assuntos comerciais, científicos ou filosóficos, usamos o inglês. A maioria do nosso povo prefere escrever em inglês. Cada escritor precisa de uma literatura que lhe sirva de modelo ou de ponto de referência. Precisa de uma série de padrões aos quais se adapte ou dos quais se afaste. Pala tinha uma boa pintura e escultura. A arquitetura era esplêndida. A música era sutil e expressiva e as danças verdadeiramente maravilhosas, porém não havia literatura no sentido real da palavra. Não existiam poetas ou dramaturgos nacionais, nem mesmo contadores de histórias. Existiam somente trovadores que recitavam as lendas budistas e hindus, e um grande número de monges que pregavam sermões ricos em intrincadas divagações metafísicas. Adotando o inglês como uma segunda língua-mãe, adquirimos uma literatura espiritual, uma grande variedade de estilos e de técnicas, bem como uma fonte inesgotável de inspiração. Resumindo, nos propiciamos a possibilidade de poder criar, num campo onde anteriormente nada havíamos criado. Graças ao rajá e ao meu bisavô, existe uma literatura anglo-palanesa, da qual, devo acrescentar, Susila é um dos luminares contemporâneos.
— No lado obscuro — disse Susila.
O dr. MacPhail fechou os olhos e, sorrindo para si mesmo, começou a recitar:
Abriu os olhos novamente e disse:
— Não é somente «essa poesia do silêncio». É a ciência, é a filosofia, é a teologia do silêncio. Já está mais do que na hora de dormir. — Levantou-se e se dirigiu para a porta, — Vou buscar um copo de suco de frutas para você.
CAPÍTULO IX
O patriotismo, a ciência, a religião, a arte, a política, a economia, o dever, a ação desinteressada e mesmo a contemplação (embora sublime), isoladamente não são suficientes. Nada é suficiente desde que o Todo seja deficiente.
— Atenção! — gritou um pássaro a distância. Will olhou seu relógio. Cinco para o meio-dia. Fechou as Notas sobre o que é quê e, apanhando seu bordão de bambu, que pertencera a Dugald MacPhail, saiu para o encontro que combinara com Vijaya e o dr. Robert. Indo pelo atalho, o edifício principal do Posto Experimental ficava a menos de um quarto de milha do bangalô do dr. Robert. Mas o calor estava opressivo. Teria que subir dois lances de escada e, para um convalescente com a perna direita ainda imobilizada por talas, esse pequeno percurso representava uma longa viagem.
Lenta e penosamente, tomou o caminho sinuoso e iniciou a subida. Ao atingir o último degrau do segundo lance, parou para descansar, enxugou a testa e, mantendo-se bem junto ao muro (no qual ainda havia uma estreita faixa de sombra), dirigiu-se para o local onde viu uma tabuleta com a palavra LABORATÓRIO.
A porta estava entreaberta; empurrando-a, achou-se na entrada de uma sala grande e de teto alto. Deparou com as pias, as mesas de trabalho e armários cheios de frascos e os instrumentos. Sentiu o cheiro dos produtos químicos e dos ratos engaiolados. Num primeiro momento teve a impressão de que a sala estava vazia, mas verificou logo que, escondido por uma estante de livros que fazia ângulo reto com a parede, Murugan lia com atenção. Tão silenciosamente quanto lhe era possível (pois é sempre divertido assustar pessoas), entrou na sala. O ruído de um ventilador elétrico encobria o som de seus passos e Murugan só percebeu sua presença quando ele se achava a poucos metros da estante. Assustado, o rapaz empurrou o livro que tinha diante de si para dentro de uma pasta de couro e, pegando outro volume menor que estava aberto na mesa, fingiu que o lia. Somente depois de ter feito todos esses arranjos foi que ergueu os olhos para o intruso.
— Sou eu — disse Will com um sorriso tranqüilizador.
No rosto do rapaz, o alívio substitui a expressão de desafio que havia em seus olhos.
— Pensei que fosse…
— Você pensou que era alguém que iria repreendê-lo por não estar fazendo o que devia, não é isso?
Sorrindo, Murugan balançou afirmativamente a cabeça cacheada.
— Onde está o pessoal? — perguntou Will.
— Todos estão nos campos podando ou polinizando — respondeu num tom de desprezo.
— Quer dizer que, com a saída dos gatos, o rato se diverte! Que é que você lia com tanta atenção?
Com ingênua insinceridade, Murugan levantou o livro que fingia ler e disse:
— Ecologia elementar.
— Isto eu estou vendo. Mas estou lhe perguntando sobre aquele que estava lendo.
— Aquele! Não lhe interessaria — disse Murugan encolhendo os ombros.