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— Mas é horrível! Essa é a melhor maneira de piorar a situação. Meu pobre filhinho…. — repetiu zombeteira. — Com isso a dor deve ter se arrastado por várias horas. E você nunca se esqueceu.

Will Farnaby não fez comentário algum, porém continuou deitado em silêncio, sacudido por incontroláveis arrepios.

— Bem, se você não quer ajudar, serei forçada a fazê-lo. Escute, Wilclass="underline" era uma cobra, uma grande cobra verde e você quase pisou nela. Você quase pisou nela e isso o assustou tanto que, perdendo o equilíbrio, você caiu. Agora, diga-o você mesmo, diga-o!

— Quase pisei nela — sussurrou obedientemente. — E então eu… — Não, não podia terminar. Finalmente conseguiu dizer, num tom de voz quase inaudíveclass="underline" — Então eu caí…

Relembrou todo o horror da cena, a náusea do medo, o terror que o acometera e fizera com que perdesse o equilíbrio e, pior que tudo, a terrível certeza de que tinha chegado ao fim.

— Diga mais uma vez.

— Quase pisei nela. E então…

Percebeu que estava chorando.

— Isso mesmo, Will. Chore, chore!

O choro transformou-se em gemidos. Sentiu-se envergonhado e, cerrando os dentes, parou de gemer.

— Não, não faça isso! — exclamou Mary Sarojini. — Não se contenha. Lembre-se daquela cobra, Will. Lembre-se da queda.

Os gemidos recomeçaram e os tremores se tornaram mais violentos do que nunca.

— Diga-me o que aconteceu.

— Pude ver-lhe os olhos e a língua entrando e saindo da boca.

— Sim, você pôde ver-lhe os olhos e a língua. Que aconteceu depois?

— Perdi o equilíbrio e caí.

— Diga-o novamente, Will.

Ele estava soluçando.

— Diga-o novamente — insistiu ela.

— Eu caí.

— Outra vez.

Aquilo o estava fazendo em pedaços, mas mesmo assim continuou:

— Eu caí.

— Outra vez, Will. — Ela era implacável. — Outra vez!

— Eu caí, eu caí. Eu caí.

Gradativamente os soluços foram diminuindo de intensidade. As palavras vinham com maior facilidade e as recordações que despertavam eram menos dolorosas.

— Eu caí — repetiu pela centésima vez.

— Porém não caiu muito longe — disse Mary Sarojini.

— Não, não caí muito longe — concordou.

— Então, qual o motivo de toda essa agitação? — perguntou ela.

Não havia maldade ou ironia no tom de sua voz. Também não havia a menor acusação. Fazia uma pergunta simples e objetiva, cuja resposta devia ser igualmente simples e direta. Realmente, qual a razão para todo esse estardalhaço? Afinal de contas, a cobra não o havia mordido e não quebrara o pescoço. Além disso, tudo acontecera ontem. Hoje havia essas borboletas e esse pássaro que lembrava as pessoas sobre a conveniência de prestarem atenção. E havia também essa criança estranha que se parecia com um anjo pertencente a alguma mitologia desconhecida e que, vivendo a cinco graus do equador, chamava-se (acreditem se quiserem) MacPhail.

Ainda mais estranho era o tom maternal com que o admoestava.

Will Farnaby riu alto.

A menina bateu palmas e riu também. O pássaro, que ainda estava em seu ombro, se associou ao riso de ambos, gargalhando estrepitosamente. O seu riso alto e demoníaco encheu a clareira e, ressoando entre as árvores, dava a impressão de que o Universo estava prestes a estourar sob o peso do imenso ridículo da existência.

CAPÍTULO III

— Fico satisfeito em ver que a coisa é divertida — comentou uma voz grave.

Will Farnaby deparou com um homem pequeno e magro, vestido à moda européia. Carregava uma maleta preta e olhava— o sorrindo. Sob o largo chapéu de palha escapava uma cabeleira farta e branca. No rosto escuro, destacavam-se olhos incrivelmente azuis e um estranho nariz adunco. Will calculou que devia beirar os sessenta anos.

— Vovô! — exclamou Mary Sarojini.

O estranho virou-se para a criança.

— De que estavam rindo? — perguntou.

— Bem… — Mary Sarojini começou a falar, mas parou em seguida a fim de pôr em ordem seus pensamentos. — Bem, ele estava num barco que naufragou na tempestade de ontem e veio dar em algum lugar lá embaixo na praia. Teve de escalar o rochedo. Lá havia algumas cobras e ele se assustou e caiu. Felizmente havia uma árvore onde se agarrou e tudo não passou de um susto. Essa foi a razão pela qual ele tremia tanto. Dei-lhe algumas bananas e o fiz contar o acontecido um milhão de vezes. De repente ele viu que não havia motivo para preocupações, uma vez que tudo já tinha acabado. Foi isso que o fez rir. E então eu o acompanhei, e o pássaro mainá também resolveu se associar às nossas gargalhadas.

— Muito bem — disse o avô. — Depois desse primeiro socorro psicológico, vamos ver o que pode ser feito para o pobre e velho «Irmão Asno» — acrescentou, dirigindo-se novamente a Will Farnaby. — A propósito, sou o dr. MacPhail. E você, quem é?

— Seu nome é Will — disse Mary Sarojini, antes que este pudesse responder. — O outro nome é Far… qualquer coisa.

— Para ser preciso, Farnaby. William Asquith Farnaby. Meu pai, como deve ter deduzido, era um liberal ardente. Mesmo quando estava bêbado. Aliás, especialmente quando bêbado. — Dizendo isso, deu uma gargalhada desagradável e irônica, que soou completamente diferente daquela gargalhada alegre e espontânea com que saudara a descoberta de que realmente não havia mais nada com que se preocupar.

— Você não gostava de seu pai? — perguntou Mary Sarojini, interessada.

— Não tanto quanto deveria — respondeu Will.

— O que ele quer dizer — explicou o dr. MacPhail à criança — é que ele odiava o pai, como muitos outros, diga-se de passagem. — Abaixou-se e, enquanto desamarrava as tiras da sua maleta preta, dirigiu-se ao estranho: — Presumo que seja um dos representantes dos nossos ex-imperialistas.

— Nascido em Bloomsbury — confirmou Will.

— Deve pertencer à classe alta, mas não é membro das «subespécies» militares ou municipais — foi o diagnóstico do médico.

— Correto. Meu pai era advogado e fazia jornalismo político, quando não estava demasiadamente ocupado com seu alcoolismo. Minha mãe, por mais inacreditável que pareça, era filha de um arcebispo. De um arcebispo — repetiu, rindo do mesmo modo que se rira ao mencionar a paixão de seu pai pelo brandy.

O dr. MacPhail olhou-o por um instante e voltou a se ocupar com sua maleta.

— Quando você ri assim — observou num tom cientificamente imparcial —, seu rosto se torna cuidadosamente feio.

Surpreso, Will tentou encobrir seu embaraço com uma resposta jocosa.

— É sempre feio — disse.

— Pelo contrário, de certa maneira baudelairiana, é bastante bonito. Com exceção de quando você resolve fazer ruídos semelhantes aos das hienas. Por que faz isso?

— Eu sou um jornalista — explicou Will. — Um «correspondente especial», pago para viajar pelo mundo e relatar todos os horrores que ocorrem. Que outra espécie de ruídos você espera que eu faça? Cuco? Bla-bla? Marx-marx? — Riu de novo e depois fez um de seus comentários chistosos: — Sou um homem que não aceita o «sim» como resposta.

— Lindo! — disse o dr. MacPhail. — Muito lindo! Porém agora tratemos de negócios.

Tirando um par de tesouras de sua maleta, começou a cortar a calça rasgada e manchada de sangue, que cobria o joelho machucado de Will. Enquanto o olhava trabalhar, Will começou a conjeturar sobre quanto de escocês e de palanês existia naquele possível highlander. Quanto aos olhos azuis e ao nariz adunco, não podia haver dúvidas. Porém a pele bronzeada, as mãos delicadas, a leveza dos movimentos — estes com certeza vinham de algum lugar bastante ao sul do Tweed.