— Eu me interesso por tudo que qualquer pessoa pretenda esconder. Era um livro pornográfico?
Abandonando sua expressão risonha, Murugan olhou-o como se estivesse realmente ofendido e perguntou:
— Quem você pensa que eu sou?
Will estava a ponto de dizer que o considerava igual a todos os rapazes de sua idade, mas se conteve em tempo. Para o jovem e belo amigo do coronel Dipa, a expressão «igual a todos» poderia ser considerada como um insulto ou uma insinuação. Ao invés disso, curvou-se com expressão zombeteira e disse:
— Peço que Vossa Majestade me perdoe — e, mudando de tom, continuou: —, mas, apesar de tudo, ainda estou curioso. Permite que eu veja? — perguntou, pondo a mão sobre a pasta.
Após hesitar um momento, Murugan disse com um riso forçado:
— Pode abrir.
— Que volume! — disse Will, puxando um grande livro que pôs sobre a mesa. E, em seguida, leu o título em voz alta: — Sears Roebuck e Cia., Catálogo de verão e primavera.
— É do ano passado — disse Murugan como que a se desculpar. — Mas não acredito que tenham surgido muitas modificações desde então.
— Aí é que se engana. Se os estilos não fossem completamente mudados, ninguém teria justificativa para adquirir as coisas novas antes que as velhas estivessem fora de uso. Você não compreende os princípios elementares que regem o comércio atual.
Abrindo o livro ao acaso, leu: Cunhas flexíveis para plataformas de amplas dimensões. Abrindo-o novamente em outra página, achou a descrição e o retrato de um soutien de dacron e algodão pina, em «rosa-suspiro».
Virou a página e lá estava, memento mori, o que a compradora do soutien viria a usar daí a vinte anos — uma cinta controlada por alças próprias para sustentar abdomes pendulares.
— Só é realmente interessante quando se chega à parte final do livro — disse Murugan. — Tem mil, trezentas e cinqüenta e oito páginas. Imagine! Mil, trezentas e cinqüenta e oito páginas!
Will saltou as setecentas e cinqüenta páginas restantes.
— Ah! Achamos! Nossos famosos revólveres e pistolas calibre 22. — Um pouco mais adiante se encontravam os Botes de fibra de vidro, os Motores marítimos de alta propulsão, um Motor de popa de 12 hp por apenas $ 234,95; o tanque de combustível estava incluído. — Mas isso é uma pechincha!
Era evidente, porém, que Murugan não estava interessado em náutica, pois, tomando-lhe o livro, folheou-o impaciente até encontrar o que procurava.
— Veja este Veleiro a motor estilo italianol.
Enquanto Will olhava, Murugan leu em voz alta:
— Esta lancha elegante e veloz chega a desenvolver 110 milhas por galão de combustível. Imagine só!! — Seu rosto, normalmente mal-humorado, irradiava entusiasmo. — E pensar que se pode andar mais de sessenta milhas com um galão, nessa motocicleta de 14,5 hp, e que eles garantem poder alcançar uma velocidade de setenta e cinco milhas por hora. Garantem!
— Notável! Foi alguém da América que lhe mandou esse livro? — perguntou Will.
Murugan sacudiu sua cabeça, negativamente.
— Foi o coronel Dipa que me deu.
— O coronel Dipa? — Que estranho presente de Hadrian para Antinous! Olhando novamente para a ilustração da motocicleta, Will fitou o rosto radiante de Murugan e a intenção do coronel se lhe revelou. A serpente me tentou e comi. A árvore no meio do jardim se chamava «Árvore do consumidor de mercadorias». Para os habitantes dos edens subdesenvolvidos, provar seu fruto ou mesmo a simples visão das suas mil, trezentas e cinqüenta e oito páginas tinha o poder de lhes trazer a vergonhosa informação de que, industrialmente falando, eram completamente nulos. O futuro rajá de Pala estava sendo informado de que não era mais que o governante nu de uma tribo de selvagens.
— Você deveria importar um milhão desses catálogos e distribuí-los gratuitamente, é claro, como os anticoncepcionais, a todos os seus súditos.
— Para quê?
— Para lhes estimular o apetite pelas coisas. Desse modo começarão a clamar por progresso. E o progresso é representado por petróleo, armamentos, Joe Aldehyde e técnicas soviéticas.
Murugan franziu as sobrancelhas e meneou a cabeça.
— Não daria certo — disse.
— Quer dizer que eles não ficariam tentados nem mesmo pelos «velozes e elegantes veleiros a motor» e os «soutiens rosa— suspiro»? Não posso acreditar!
— Pode lhe parecer inacreditável, mas é um fato — disse Murugan amargurado. — Eles simplesmente não se interessariam.
— Nem mesmo os jovens?
— Eu diria que especialmente eles.
Will Farnaby aguçou os ouvidos. Essa falta de interesse lhe parecia profundamente interessante.
— Não consegue imaginar qual a razão? — perguntou Will.
— Não preciso imaginar — respondeu. — Sei qual a razão. — E, como se de repente se decidisse a fazer uma imitação de sua mãe, começou a falar num tom de justa indignação que destoava completamente da sua idade e aparência. — Para início de conversa, estão demasiadamente preocupados com… — Hesitou um momento e conseguiu terminar, entre dentes e ostensivamente nauseado, a frase: —…com o sexo.
— Mas todos estão preocupados com o sexo e nem por isso deixam de idolatrar os «elegantes veleiros a motor».
— O sexo aqui é diferente — insistiu Murugan.
— Por causa da ioga do amor? — perguntou Will, lembrando-se do rosto extasiado da pequena enfermeira.
O rapaz concordou.
— Possuem algo que os faz pensar que são completamente felizes e por isso nada mais desejam.
— Mas isto é uma verdadeira bênção!
— Não concordo — disse Murugan com rispidez. — É apenas estúpido e nauseante. Nada de progresso, somente sexo, sexo, sexo! Afora isso, apenas o abominável narcótico que lhes é dado.
— Narcótico? — perguntou Will, atônito. Narcótico num lugar onde Susila declarara não haver viciados? — Que espécie de narcótico?
— É feito de cogumelos venenosos! — Ao dizer isso, se transformou numa verdadeira caricatura da rani, nos momentos em que adquirira os mais vibrantes tons de espiritualidade ultrajada.
— Por acaso não serão desses lindos cogumelos onde os anões costumavam sentar?
— Não. Esses são amarelos. Costumava-se ir colhê-los nas montanhas. Agora, essas «coisas» crescem no Posto Experimental de Grandes Altitudes, em canteiros especiais de fungos. É narcótico cultivado cientificamente. Lindo, não?
Uma porta bateu. Ouviu-se o som de vozes e de pisadas que vinham do corredor. O espírito indignado da rani desapareceu abruptamente e Murugan se transformou, mais uma vez, no estudante que, cheio de remorsos, tenta esconder suas faltas. Num instante, a Ecologia Elementar tomou o lugar da Sears Roebuck e a pasta cheia e de aspecto suspeito foi para debaixo da mesa. Após um momento, Vijaya entrou na sala. Seu peito, nu e suado pelo trabalho sob o sol do meio-dia, brilhava como bronze oleado. Atrás dele vinha o dr. Robert. Com o ar de um estudante-modelo que foi interrompido em seus estudos por transgressores do frívolo mundo exterior, Murugan olhou-os. Divertido, Will imediatamente prestou-se com sinceridade ao papel que lhe fora designado.
— Cheguei cedo demais — disse em resposta às desculpas de Vijaya por terem chegado atrasados. — Acabei perturbando os estudos do nosso jovem amigo. Estivemos conversando muito.
— Qual o assunto? — perguntou o dr. Robert.
— Os mais variados. Repolhos, reis, barcos a motor e abdomes pendulares. Quando vocês entraram, falávamos sobre os cogumelos. Murugan me falava a respeito dos fungos usados aqui como estupefacientes.
— Qual a significação de um nome? — perguntou o dr. Robert sorrindo. — Resposta: praticamente tudo. Murugan teve o infortúnio da educação européia e os chama de entorpecentes. Sua desaprovação vem de um reflexo condicionado, desencadeado por essa palavra sórdida. Nós, pelo contrário, chamamo-lo moksha, o revelador da realidade, a pílula da verdade e da beleza, e sabemos, graças a experiências objetivas, que esses nomes são merecidos. Mas nosso jovem amigo não tem o menor conhecimento a respeito dessa droga e não pôde ser ao menos persuadido a experimentá-la, porquanto, para ele, entorpecente é por definição algo a que nenhuma pessoa decente deve jamais ceder.