— Parece que resolveram satisfatoriamente seus problemas econômicos.
— Resolvê-los não foi difícil. Primeiramente, nunca nos permitimos produzir mais crianças do que aquelas que pudéssemos alimentar, vestir, abrigar e transformar em algo parecido com seres humanos. Temos fartura de alimento, pela simples razão de não termos excesso de população. Apesar disso, resistimos à tentação do excesso de consumo, tentação à qual o Ocidente acaba de sucumbir. Não nos empanturramos de gorduras seis vezes mais do que o organismo necessita e por isso não somos chegados às doenças das coronárias. Não nos hipnotizamos com a crença de que possuir dois aparelhos de televisão nos fará duas vezes mais felizes do que se tivéssemos um só. Finalmente, não gastamos um quarto do orçamento da nação nos preparando para a Terceira Guerra Mundial ou para sua irmã caçula, a Guerra Local. Os três pilares da propriedade ocidental consistem em armamentos, débito universal e absolutismo planejado. Haveria um colapso total se a guerra, o desperdício e a agiotagem fossem abolidos. E, enquanto vocês abusam do consumo, o resto do mundo se afunda cada vez mais na desgraça crônica, através da ignorância, do militarismo e da procriação. Das três causas, a última é a que traz maiores conseqüências, pois não há esperanças, nem sequer a mínima possibilidade, de se resolver qualquer problema econômico até que esse esteja solucionado. À proporção que a população cresce, a prosperidade decresce. — O dr. Robert traçou uma linha descendente com o dedo. — E, enquanto a prosperidade decresce, o descontentamento, a rebelião — o dedo se ergueu novamente —, a crueldade política, a lei de um só partido, o nacionalismo e a belicosidade começam a crescer. Com mais uns dez anos de procriação desenfreada, o mundo inteiro, da China ao Peru, via África e Oriente Médio, estará coalhado de «grandes líderes», todos dedicados à supressão da liberdade, armados até os dentes pela Rússia ou pela América (ou simultaneamente pelos dois), agitando bandeiras e bradando por Lebensraum.
— E Pala? — perguntou Will. — Daqui a dez anos não será também abençoada com um «grande líder»?
— Não se o pudermos impedir, pois sempre fizemos o possível para dificultar a ascensão de um «grande chefe».
Pelo canto dos olhos, Will observou que o rosto de Muru-gan tinha a expressão de indignado e desdenhoso asco. Evidentemente Antinous imaginava ser um «herói de Carlyle». Will voltou-se novamente para o dr. Robert.
— Explique-me como conseguem fazer isso.
— Em primeiro lugar, não provocamos guerras nem nos preparamos para elas. Em conseqüência disso, não temos necessidade de recrutamento, hierarquias militares ou comandos unificados. Nosso sistema econômico não permite que alguém tenha uma fortuna que ultrapasse mais de quatro ou cinco vezes a média. Disto resulta e inexistência de capitães de indústrias e de financistas onipotentes. Melhor ainda, não possuímos políticos ou burocratas onipotentes. Pala é uma federação de unidades autogovernadas: unidades geográficas, unidades profissionais e unidades econômicas, havendo bastante oportunidade para iniciativas em pequena escala e para os líderes democráticos. Mas não há campo para qualquer espécie de ditador, à frente de um governo centralizado. Além disso, não temos igreja estabelecida, e nossa religião salienta a experiência imediata e deplora a crença em dogmas improváveis e as emoções inspiradas, decorrentes dessa crença. Desse modo, estamos salvos das pragas do papismo e das revivificações fundamentalistas. E, lado a lado com as experiências transcendentais, cultivamos sistematicamente o ceticismo. Faz parte integral do currículo escolar desencorajar as crianças a tomarem as palavras com demasiada seriedade, ensinando-lhes a analisar tudo o que ouvem ou lêem. O resultado é que um eloqüente incitador de massas como Hitler ou o nosso vizinho do outro lado do estreito, o coronel Dipa, não têm a menor chance aqui em Pala.
Isso foi demasiado para Murugan, que, sem conseguir se conter por mais tempo, explodiu:
— Porém veja a energia que o coronel Dipa inoculou em seu povo. Olhe para toda aquela devoção e auto-sacrifício! Não temos nada parecido por aqui.
— Graças a Deus! — disse o dr. Robert.
— Graças a Deus! — ecoou Vijaya.
— Mas essas coisas são boas e eu as admiro! — protestou o jovem.
— Também as admiro — disse o dr. Robert. — Admiro-as do mesmo modo que admiro um tufão. Infelizmente essa espécie de devoção e auto-sacrifício são incompatíveis com a liberdade, e isso sem mencionar a razão e a decência. Mas Pala tem se batido exatamente pela liberdade, pela razão e pela decência da humanidade, desde o tempo de seu homônimo, Murugan, o Reformador.
Tirando uma lata de sob o banco, Vijaya destampou-a e serviu sanduíches de queijo e abacate.
— Não podemos parar para comer.
Ligando o motor do jipe, segurava o sanduíche com uma das mãos e com a outra continuava a dirigir estrada afora.
— Amanhã eu lhe mostrarei algumas vistas da vila e também um espetáculo ainda mais notável, que é o da minha família almoçando — disse Vijaya. — Isso é impossível hoje, pois temos compromisso aqui nas montanhas.
Próximo à entrada da vila, dirigiu o veículo por uma estrada lateral que serpeava entre as íngremes plataformas de campos de arroz e de legumes, entremeados de pomares e, aqui e ali, de plantações de pequenas árvores destinadas a fornecer às fábricas de Shivapuram o seu material bruto, segundo explicação do dr. Robert.
— Qual é o número de jornais mantidos por Pala? — perguntou Will. Ficou admirado ao saber que havia apenas um. — Quem tem o monopólio? O governo? O partido que está no poder? O Joe Aldehyde local?
— Ninguém possui o monopólio — assegurou-lhe o dr. Robert. — Há um quadro de editores representando meia dúzia de partidos e de interesses diferentes. Cada um recebe o espaço que lhe foi destinado para fazer os comentários e críticas. Ao leitor é dada a oportunidade de comparar os seus argumentos e escolher. Lembro-me perfeitamente de como fiquei chocado na primeira vez que li um dos seus jornais de grande circulação. As manchetes tendenciosas, a distorção sistemática das reportagens e dos comentários. Slogans publicitários em vez de argumentos. Nenhum apelo sério à razão. Apenas um esforço sistemático para estabelecer reflexos condicionados nas mentes dos leitores. Quanto ao resto, crime, divórcio, anedotas, mexericos, qualquer coisa destinada a mantê-los distraídos e impedi-los de pensar.
O jipe continuava subindo e eles se encontravam agora entre duas encostas abruptas terminando à esquerda num lago cercado de árvores, ao pé de uma garganta. A direita havia um vale mais espaçoso, onde, entre duas aldeias arborizadas, erguia-se — como incongruência geométrica — uma grande fábrica.
— É alguma fábrica de cimento? — perguntou Will.
O dr. Robert meneou afirmativamente a cabeça.
— Sim. É uma das indústrias indispensáveis. Nossa produção dá para o consumo, havendo ainda um excesso, que é exportado.
— E essas pequenas vilas fornecem a mão-de-obra?
— Sim. Nos intervalos entre o trabalho de agricultura, na floresta e nas serrarias.
— Essa espécie de sistema de trabalho em tempo não-integral funciona bem?
— Depende do que você considera «bem». O resultado não é o máximo de eficiência. Porém em Pala a eficiência máxima não é considerada um imperativo categórico, como acontece com vocês. A sua principal preocupação é obter a maior produção possível no menor espaço de tempo, enquanto nós pensamos primeiramente em termos de seres humanos satisfeitos. A mudança constante de atividade não traz o maior rendimento em menos dias, mas a maioria das pessoas prefere isso a ter que fazer o mesmo serviço durante toda a vida. Se tivermos de escolher entre a eficiência mecanizada e a satisfação humana, escolheremos a segunda.