— Quando tinha vinte anos de idade — Vijaya adiantou —, trabalhei quatro meses naquela fábrica de cimento. Depois de trabalhar com superfosfatos, passei seis meses na selva como lenhador.
— Quanto trabalho honesto e pesado! É horrível!
— Há vinte anos passados — disse o dr. Robert —, fiz um serviço na fundição de cobre e, após isso, senti o cheiro do mar num barco de pesca. Faz parte da educação de todos experimentar várias espécies de trabalho. Desse modo se aprende muito, sobre coisas, profissões e organizações. Trava-se conhecimento com várias espécies de pessoas e o modo como pensam.
Will balançou a cabeça dizendo:
— Ainda assim, prefiro aprendê-las nos livros.
— Mas o que se obtém nos livros não é a mesma coisa. No fundo, todos vocês não passam de platônicos que adoram as palavras e detestam os fatos — acrescentou o dr. Robert.
— Diga isso aos clérigos, que estão sempre a nos chamar de materialistas grosseiros.
— De fato, são grosseiros — concordou o dr. Robert. — Mas essa grosseria é motivada justamente pelo fato de não serem mais que materialistas incompletos. Professam o materialismo abstrato. Enquanto nós insistimos em ser concretamente materialistas, materialistas nos níveis mudos da visão, do tato, do olfato, dos músculos contraídos e das mãos sujas. O materialismo abstrato é tão nocivo quanto o idealismo abstrato, que torna quase impossível a experiência espiritual imediata. Como materialistas concretos, o fato de experimentarmos diversas espécies de trabalho constitui o primeiro, e indispensável, passo em nossa educação, visando ao espiritualismo concreto.
— Porém mesmo o materialismo mais concreto não nos levará muito longe, a não ser que tenhamos plena consciência daquilo que estamos fazendo e sentindo — interveio Vijaya. — É necessário que tenhamos plena consciência dos pequenos detalhes nas profissões que estivermos exercendo, bem como das pessoas com quem trabalhamos.
— Estou de pleno acordo! — disse o dr. Robert. — Deveria ter tornado bem claro que o materialismo concreto apenas representa a parte não trabalhada de uma vida absolutamente humana. E é através de um conhecimento completo e vigilante que a transformamos em espiritualidade concreta. Estando completamente cônscios daquilo que fazemos, o trabalho se torna a «ioga do trabalho», a diversão passa a ser a «ioga da diversão» e a vida diária é a «ioga da vida diária».
Will se lembrou de Ranga e da pequena enfermeira e perguntou:
— E a respeito do amor?
O dr. Robert respondeu:
— O amor também é transfigurado pela consciência e o ato do amor passa a representar a «ioga do ato do amor».
Murugan imitou a expressão escandalizada de sua mãe.
— Todas essas iogas são fundamentalmente os meios psicossomáticos visando a uma finalidade transcendental — disse Vijaya, levantando a voz para abafar o arranhar da primeira marcha que acabara de engatar. — Mas também são algo mais: são artifícios que permitem lidar com os problemas do poder. — Voltando a engatar em marcha mais silenciosa, sua voz readquiriu o tom normaclass="underline" — Os problemas do poder — repetiu. — Defrontamo-nos com eles em todos os tipos de organização. São problemas que envolvem o governo nacional, as creches e os casais em lua-de-mel. Não se trata simplesmente de uma questão de tornar as coisas difíceis para os «grandes líderes». Há milhões de tiranos e perseguidores em pequena escala. São os mudos e inglórios Hitlers, os Napoleões das vilas, os Calvinos e os Torquemadas da família. Isso sem mencionar os bandidos e tiranos, cuja estupidez é tão grande que nos permite que os classifiquemos como criminosos. Como se pode aproveitar a enorme força produzida por essas pessoas, fazendo com que seja utilizada em algum trabalho útil? Como fazer com que, pelo menos, deixem de ser nocivos?
— É exatamente isso que gostaria de saber — disse Will. — Por onde vocês começam?
— Começamos simultaneamente em todos os lugares — respondeu Vijaya. — Desde que não se pode dizer senão uma coisa de cada vez, comecemos falando a respeito da anatomia e da fisiologia do poder. O dr. Robert lhe dará a introdução bioquímica desse assunto.
— Há cerca de quarenta anos — disse o dr. Robert — estudava em Londres e comecei a visitar as prisões durante os fins de semana e a ler História nas minhas noites de folga. Observei, através das minhas visitas e de minhas leituras, que havia uma correlação entre os crimes, desatinos e desgraças da humanidade (isso é de Gibbon, não é?) e os locais onde são encarcerados os infelizes autores de crimes malogrados e de outras espécies de desatinos. Lendo e conversando com os meus «pássaros engaiolados» vi-me frente a frente com várias perguntas. Que espécie de pessoas se transformam em delinqüentes perigosos? Que faz os grandes delinqüentes dos livros de História e os pequenos delinqüentes de Pentonville e da «terra dos anões amargurados»? Que categoria de pessoas é tentada pelos faustos do poder e pela paixão da tirania e do domínio? Quem são esses homens e mulheres insensíveis que sabem o que querem e não têm o menor escrúpulo em ferir, a fim de verem realizados seus desejos? E os monstros que ferem e matam não visando ao lucro, mas pela simples razão de que ferir e matar é uma coisa que os diverte? Essas perguntas me intrigavam e costumava discutir esses assuntos com os especialistas: médicos, psicólogos, sociólogos e professores. Mantegazza e Galton estavam fora de moda e a maioria dos meus especialistas me assegurava que as únicas respostas convincentes a essas perguntas só podiam ser dadas em termos de cultura, economia e família. Tudo se resumia numa questão de traumatismos causados pelas mães ao quererem condicionar precocemente as crianças ao uso de vasos sanitários e aos ambientes causadores de traumas. Admitia que o condicionamento precoce dos atos fisiológicos e as tolices relativas às circunstâncias ambientais desempenhassem um papel importante; mas isso resumiria tudo! Seriam esses os únicos fatores importantes? Eu só estava meio convencido. Durante o período das minhas visitas às prisões, comecei a perceber a existência de uma espécie de padrão intrínseco. Os delinqüentes perigosos e os agitadores amantes do poder não pertencem a uma única espécie. Já naquela época comecei a perceber que a maioria deles pertence a uma das duas espécies que são completamente diferentes entre si: os «homens músculos» e os «Peter Pans». Eu me especializei no tratamento dos «Peter Pans».
— Os meninos que nunca se tornam adultos? — perguntou Will.
— Nunca não é a palavra apropriada. Na vida real, Peter Pan sempre acaba crescendo. Apenas cresce tarde demais: o crescimento fisiológico é mais lento do que a passagem dos seus aniversários.
— E as «Peter Pans» do sexo feminino?
— São muito raras, porém os meninos são tão comuns quanto as amoras pretas. Pode-se contar com um deles em cada cinco ou seis crianças do sexo masculino. E se você tirar uma radiografia dos punhos de todas as crianças-problema, dos meninos que jamais conseguem ler, dos que não querem se educar, que não fazem amigos e que acabam se voltando para as mais violentas formas de delinqüência, verá que a proporção de «Peter Pans» é de sete para cada dez. Os demais pertencem, na sua grande maioria, a uma ou outra espécie de «homens músculos».
— Estou tentando imaginar um bom exemplo histórico de um delinqüente «Peter Pan».
— Não é necessário ir muito longe. Adolf Hitler foi o melhor e o mais recente exemplo.
— Hitler? — o tom de voz de Murugan revelava uma surpresa ofendida, pois evidentemente era um dos seus heróis.
— Leia a biografia do fuhrer — disse o dr. Robert. — Ele é um «Peter Pan» e jamais existiu outro igual. Um fracasso na