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— O senhor nasceu aqui? — perguntou afinal.

O médico balançou a cabeça afirmativamente.

— Em Shivapuram, no dia do funeral da rainha Vitória. — Houve um clique na tesoura, e o joelho ficou exposto. — Bastante mau — foi o veredicto do dr. MacPhail, depois de examiná— lo minuciosamente. — Mas não acho que seja realmente grave. — Virou-se para a neta e disse: — Gostaria que você fosse correndo ao posto e dissesse a Vijaya para vir aqui acompanhado de outro homem. Diga-lhes que tragam uma maca da enfermaria.

Mary Sarojini fez um sinal afirmativo com a cabeça e, sem uma palavra, levantou-se e atravessou correndo a clareira.

Will acompanhou com os olhos a pequena figura que se afastava, a saia vermelha agitando-se de um lado para outro e a pele rósea e lisa do dorso, que brilhava com reflexos dourados sob a luz do sol.

— Você tem uma neta extraordinária — disse ao dr. MacPhail.

— O pai de Mary Sarojini era meu filho mais velho — disse o médico após um curto silêncio. — Faleceu há quatro meses num acidente de alpinismo.

Will murmurou condolências e o silêncio caiu entre eles.

O dr. MacPhail desarrolhou uma garrafa de álcool e desinfetou as mãos.

— Isso vai doer um pouco — avisou. — Sugiro que preste atenção àquele pássaro. — Fez um movimento com a mão em direção à árvore morta, para onde o mainá retornara após a saída de Mary Sarojini. — Ouça-o cuidadosamente, concentrando— se nele. Isto afastará sua atenção da dor.

Will Farnaby escutou. O mainá voltara ao seu tema iniciaclass="underline"

— Atenção! — chamava o oboé, nitidamente. — Atenção!

— Atenção para quê? — perguntou, na esperança de obter uma resposta mais esclarecedora do que a obtida de Mary Sarojini.

— Para a atenção — respondeu o dr. MacPhail.

— Atenção para a atenção?!

— Claro!

— Atenção! — cantou o mainá, como que confirmando, ironicamente.

— Vocês têm muitos desses «pássaros falantes»?

— Deve haver pelo menos mil deles voando pela ilha. Foi uma idéia do velho rajá. Ele pensou que fazia bem ao povo. Talvez o fàça, apesar de parecer bastante injusto aos pobres mainás. Felizmente não entendem discursos de propaganda. Nem mesmo os de São Francisco. Que idéia! — continuou. — Fazer sermões aos bons tordos e pintassilgos. Que presunção! Por que não ficou calado e deu aos pássaros a oportunidade de pregarem para ele! E agora — acrescentou em outro tom — é melhor que você comece a ouvir o nosso amigo da árvore. Vou limpar o ferimento.

— Atenção!

— Vou começar.

Will Farnaby estremeceu e mordeu os lábios.

— Atenção! Atenção! Átenção!

Sim, era verdade. Se se escutasse com bastante atenção, a dor deixava de ser tão forte.

— Atenção! Atenção…

— Não posso conceber como você conseguiu subir aquela rocha! — disse o dr. MacPhail enquanto apanhava uma atadura.

Will conseguiu rir.

— Ainda se lembra do começo de Erewhom? — perguntou. — No dizer da sorte, a Providência estava do meu lado…

Do lado mais afastado da clareira veio o som de vozes. Will virou a cabeça e viu Mary Sarojini surgir do meio das árvores, a saia vermelha balançando enquanto saltava. Atrás dela, nu até a cintura e carregando nos ombros as varas de bambu da maca de lona enrolada, caminhava a imensa figura bronzeada de um homem, e atrás dele vinha um esbelto adolescente de pele escura e de calções brancos.

— Este é meu assistente, Vijaya Bhattacharya — disse o dr. MacPhail enquanto a figura bronzeada se aproximava.

— No hospital?

O dr. MacPhail balançou a cabeça negativamente.

— Com exceção dos casos urgentes eu não exerço mais a medicina. Vijaya e eu trabalhamos juntos no Posto Experimental Agrícola. E Murugan Mailendra — disse, apontando para o rapaz de pele escura — está conosco desde há algum tempo, estudando a ciência do solo e do crescimento das plantas.

Vijaya deu passagem e, pousando sua grande mão no ombro do companheiro, empurrou-o adiante.

Olhando para aquele rosto bonito e mal-humorado, Will ficou surpreso ao reconhecer o jovem de elegância irrepreensível que havia cinco dias encontrara dirigindo, por toda a ilha de Rendang-Lobo, o Mercedes branco do coronel Dipa.

Sorriu para ele e, quando ia dirigir-lhe a palavra, percebeu que o rapaz balançara quase imperceptivelmente, porém de maneira muito significativa, a cabeça. Em seus olhos pôde ler uma expressão de súplica angustiada. Seus lábios se moveram silenciosamente. «Por favor», pareciam estar dizendo. «Por favor…»

Will recompôs a expressão do rosto e disse:

— Como está, Mr. Mailendra? — perguntou num tom formal.

Murugan pareceu francamente aliviado.

— Como está? — respondeu curvando-se ligeiramente.

Will olhou em sua volta para ver se os outros haviam percebido o que acontecera. Mary Sarojini e Vijaya estavam ocupados com a maca e o médico arrumava sua maleta preta. A pequena comédia havia sido representada sem auditório.

O jovem Murugan evidentemente tinha as suas razões para não querer que se soubesse de sua estada em Rendang. Os rapazes são sempre os mesmos. Pode mesmo acontecer que não sejam realmente rapazes.

O coronel Dipa tinha sido mais do que paternal com seu jovem protegido e, em relação àquele Murugan, tinha tido uma atitude mais do que filial — uma atitude, positivamente, de franca adoração. Seria apenas adoração por um herói, simplesmente a admiração de um colegial pelo homem forte que vencera uma revolução e que, após liquidar os opositores, se instalara como um ditador? Será que havia outros sentimentos envolvidos?

Estaria Murugan representando o papel de Antinous para esse Hadrian de bigodes pretos? Ele tinha o direito de se sentir desse modo em relação aos gangsters militares de meia-idade. E se o gangster gostava de rapazes bonitos, também esse direito não lhe podia ser negado. E, talvez, Will continuou a refletir, fora por esse motivo que o coronel Dipa se abstivera de fazer uma apresentação formal.

— Este é Muru — fora tudo o que dissera, quando o rapaz entrara no gabinete presidencial. — Meu jovem amigo Muru. — E, levantando-se, havia posto o braço em volta dos ombros do rapaz, impelindo-o para o sofá, e sentou-se a seu lado.

— Posso dirigir o Mercedes? — perguntou Murugan.

O ditador sorrira com benevolência e concordara com um movimento de sua cabeça preta e lustrosa.

Por esse motivo Will pensava que havia alguma coisa além de uma simples amizade envolvendo aquelas estranhas relações. No volante do carro esporte do coronel, Murugan revelou-se um maníaco. Somente um amante apaixonado teria confiado sua vida, sem mencionar a de seu hóspede, a tal espécie de chofer. Na baixada entre Rendang-Lobo e os campos petrolíferos, o velocí— metro, por duas vezes, tocou os cento e dez quilômetros por hora. Muito pior do que isso foi o que aconteceu na estrada montanhosa que ia dos campos petrolíferos para as minas de cobre. Nesse percurso cheio de precipícios, onde os búfalos-da-índia surgiam das moitas de bambu, a pouca distância do carro, e caminhões de dez toneladas vinham em direção oposta, as curvas eram tão fechadas que faziam os pneus chiarem.

— O senhor não está um pouco nervoso? — Will se aventurara a perguntar. Mas o gangster, além de apaixonado, era devoto.

— Se alguém tem a certeza de estar cumprindo a vontade de Alá, e eu tenho, Mr. Farnaby, não há razão para nervosismos. Nessas circunstâncias isso seria uma verdadeira blasfêmia — disse o coronel Dipa.

Enquanto Murugan se desviava para evitar outro búfalo, o coronel abriu uma cigarreira de ouro e ofereceu a Will um cigarro Balcan Sobranje.

— Está pronta — disse Vijaya.